Na rua, quando fazemos teatro, nós somos a paisagem. Somos a intervenção efêmera na paisagem que, enquanto ocorre, se torna parte desta, provocando paradas, deslocamentos e desvios, daqueles que passam por onde nos colocamos com nosso teatro. Há os que passam reto como talvez passem há anos sem notar o caminho que percorrem ou o que por ventura se interponha nele. Mas aí se tem jeito não foi o nosso.
Ao menos duas coisas me parecem fundamentais para o teatro que fazemos: a primeira delas diz respeito, a meu ver, especificamente ao teatro de rua. Trata-se do posicionamento estratégico do espetáculo de rua em relação ao espaço de forma a valorizar e destacar o mesmo e integrá-lo como parte do significado da obra; a cidade como cenário, diferente da cidade como palco. Esta logística se repete a cada espaço onde o trabalho acontece. O teatro de rua carrega um elemento de permanência e mudança a cada novo local de apresentação. É como um objeto cuja matéria se desintegrasse ao término de cada apresentação e se reintegrasse novamente num outro espaço, ligeiramente modificada pelo tempo que passou entre um momento e outro e pelo novo espaço, cujos elementos o trabalho incorpora. E entre uma manifestação e outra deste teatro, permanece a aura do que ele foi e a que poderá ser num momento seguinte.
Diferentemente de um quadro que uma vez pintado pode atravessar séculos de museu em museu ou de mão em mão, o espetáculo de teatro se esvai ao final de cada apresentação, podendo se reconstituir, guardadas as devidas proporções, quando novamente encenado pelos mesmos atores que detém o poder de conhecê-lo, portanto o refazem a cada nova apresentação. O segundo item fundamental diz respeito exatamente ao ator, esta figura forte e frágil ao mesmo tempo, que raro prescinde da figura do diretor para confortá-lo ao dar vida a seu trabalho. Penso ser o ator um ser resiliente em seu processo de criação pois é impactado pela personalidade e vida das personagens as quais interpreta; o ator toma distancia de si e ao mesmo tempo que se empresta e se mistura a estas personagens durante o processo de criação e a cada nova representação do espetáculo para ao final de cada jornada tornar a si íntegro e ao mesmo tempo modificado e não raro fortalecido por este processo. Ele aprende não só com as personagens as quais interpreta, mas aprende consigo e aprende de si, das suas emoções a cada micro partícula de seu ser, trazidas a luz. Ao mergulhar para dentro de si em busca da personagem o ator se encontra e estar diante de si e de suas emoções. É um processo dolorido em que a alma e a consciência de si expandem.
É parte do papel do diretor: amparar o ator neste processo de criação, estar atento a detalhes fundamentais como sua voz e a corporeidade em relação ao trabalho que o mesmo desenvolve. Neste sentido dirigir-se num espetáculo é um risco que poucos dão conta de forma satisfatória, mas é possível se pensarmos no fenômeno da resiliência. Domingos Oliveira disse em certa ocasião que consegue se imaginar fazendo o trabalho, contracenando com seus colegas e, portanto, age como se observasse a si mesmo e consegue se dirigir. É possível. Outros também o fizeram e fazem. Eu particularmente prefiro o diretor que, como um maestro, rege a orquestra onde atores tocam com seus corpos a partitura do espetáculo. Um maestro em quem se confie e se possa entregar num processo de criação teatral que por mais brando que seja pra um ator que está ciente de seu ofício é sempre dolorido, às vezes alegremente dolorido, mas dolorido ainda assim. Pois que são sempre preciosidades de sua alma e de outros, de quem o ator toma emprestado, identificando e juntando pequenos cacos, sutilezas a formar a alma das personagens. Visto assim, o diretor é o único desta relação diretor x ator que vê, (quando também não está como ator no processo), a obra acabada, o quadro pintado, se assim podemos dizer.
A responsabilidade do diretor é grande neste processo criativo, pois além da concepção do espetáculo que pode ser discutido com os atores e demais membros da equipe, mas, em última instância é dele, carrega a responsabilidade de estimular e amparar o ator em seu processo criativo. Na rua esta responsabilidade aumenta porque, ainda que para quem faça teatro nesses locais o sinta um pouco como a nossa casa, há sempre o imponderável a ser considerado dentro do trabalho e da segurança do todo e de todos.
Eu penso a rua não como palco, mas como paisagem. Estar na rua não é estar no palco, é estar na paisagem, é ser a paisagem, é se mimetizar a paisagem aos olhos dos que estão de fora da cena. A cidade nos acolhe para dentro de si enquanto compomos com ela o nosso teatro. Estamos na paisagem e a paisagem está em nós enquanto atuamos, somos parte do que se vê, somos a paisagem que vê.
Por Noemia Scaravelli Como lá em Casa – MTR/SP Socióloga/ atriz e diretora teatral
Por Noemia Scaravelli Como lá em Casa – MTR/SP Socióloga/ atriz e diretora teatral
Um comentário:
Lindo!!
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