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terça-feira, 15 de novembro de 2011

Arte pública em debate




Do direito à cidade à arte civil: contribuições do teatro de Rua
Contextualização
Este texto surge das inquietações provocadas pela discussão de arte pública, papel do Teatro de Rua e sua inerente característica política ou não. As preocupações aqui contidas tentam subsidiar ou estabelecer um diálogo inesgotado sobre a potencial função social do teatro. Também se trata de verificar se há de fato um papel que o Teatro de Rua cumpre que por sua manifestação em locais abertos e livres, ele tem um potencial, não uma determinação em oferecer um contraponto à mercantilização quando permite ampliação ofertas de bem culturais para nossa população que não adentra em locais casas de espetáculos por dificuldades diversas, a econômica sendo mais evidente!


           

Este texto fará um esforço teórico, mas não irá aprofundar em alguns aspectos já que busca uma orientação coletiva para um discurso em construção.


O trabalho inicial consiste em definir o que é o direito à cidade. Num segundo passo se buscará distinguir espaço público, coletivo, privado, comum, de coexistência/conflito, de todos de espaço civil temporário ou permanente. Estas definições ficarão em uma caixa de texto de modo separar e iniciar a construção de um léxico que organize as discussões. Continuando as abordagens será composta uma discussão de arte pública para arte civil.


Esta base nos dará oportunidade de falar de tempo e espaço civil e o compromisso de artistas que fazem arte na/com/para/de rua e em que pé o movimento de Teatro de Rua parece ter voltado seus interesses.


Este conteúdo de arte civil é desenvolvido por Zygmunt Bauman em sua obra Modernidade Líquida, quando sugere a redução do ritmo urbano e para isso afirma que os espaços públicos não são civis. Na mesma matéria há um conteúdo que me aproprio: "A contestação da cidade como máquina de mobilidade constitui um tema emergente. Muito diferentes entre si, as novas táticas que visam retardá-la incluem igualmente a 'liberação das ruas' do movimento Reclaim the Street', inspiradas na 'Zonas autônomas temporárias' anarquistas (Hakim Bey), e de maneira mais institucional, a rede de ' cidades lentas' Città Slow. Ao se imobilizar no espaço público e se apropriar coletivamente dele para trocar e inventar novas práticas, os campistas da Praça 15 de Maio (Espanha) fazem transpor um novo patamar de maturidade na contestação popular da cidade neoliberal[1]."


Aceitar-se-á que: "a luta pelo Direito à Cidade busca incorporar os direitos humanos básicos no campo da governança das cidades. Busca-se mudar as formas de planejar, governar e desenvolver as cidades, de modo que o resultado disso seja o benefício dos seus habitantes[2].


Este conteúdo acima definido tem sua origem em vasto campo teórico elaborado pelo geógrafo David Harveyque em entrevista afirma: "Eu entendo que o direito à cidade significa o direito de todos nós a criarmos cidades que satisfaçam as necessidades humanas, as nossas necessidades. O direito à cidade não é o direito de ter – e eu vou usar uma expressão do inglês – as migalhas que caem da mesa dos ricos. Todos devemos ter os mesmos direitos de construir os diferentes tipos de cidades que nós queremos que existam. O direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já existe na cidade, mas o direito de transformar a cidade em algo radicalmente diferente. Quando eu olho para a história, vejo que as cidades foram regidas pelo capital, mais que pelas pessoas. Assim, nessa luta pelo direito à cidade haverá também uma luta contra o capital[3]".


Harvey tem suas bases em perspectiva socialista e marxista e será utilizado aqui associado a Tuan[4] em suas elaborações sobre topofilia, superficialmente tratado como "amor ao espaço". Não é uma união fácil no meio especializado, mas foda-se!



Algumas observações


a) Público – entende-se como espaço de uso de todos os cidadãos, mas isso é oscilante. Ser público é pertencer ao público sem implicar em uso coletivo. Assim uma praça pública segue restrições para sua preservação. Uma reserva florestal é pública e estatal, restrita e pertence às gerações futuras. Um parque infantil público é reservado ao uso comum direto das crianças e assim adultos não podem usufruir da mesma forma de seus equipamentos. O espaço público se mescla com espaço Estatal ou para as funcionalidades do Estado, assim, nem todo espaço estatal é de uso coletivo ou comum. Ser público ou democrático não significa ser sem restrições.


b) Coletivo – o uso coletivo de um espaço não significa que ele seja público. Um shopping é de uso coletivo e de convívio para realizar as compras. A residência de uma família não é de uso coletivo, mas familiar ou individual. O uso coletivo é apenas um definição que se realiza por mais pessoas, ainda que guardando conflitualidades.


c) Privado – do ponto de vista humano o único espaço privado essencialmente deve ser um espaço íntimo ligado à saúde da individuação ou particular. Na sociedade capitalizante é o espaço que uma pessoa ou conjunto delas se apropria pela força, compra/herança ou por leis tendenciosas e o usa para a acumulação ou reserva de capital sem compromisso com as gerações futuras. Sua essência é a restrição que servirá para acumulação através de diversos mecanismos.


d) Comum – o uso comum de um espaço não o define como coletivo, público ou democrático, podendo ser um espaço privatizado que se concede a um tipo de uso comum, inclusive para dele se obter vantagens, por isso não pode ser dito como um espaço democrático. O banheiro masculino é de uso comum dos que se aproximam dele, assim, não comum para as mulheres em condições de uso coletivo feminino por higiene, preconceito, religião e legislação.


e) Coexistência/conflito – todos os espaços são uma mescla temporária de conflitos e convívios particulares, podendo ser público ou privado. A urbanidade é conflituosa e por isso de coexistência criada permanentemente. Uma praça pública durante o dia é de uso de comum, coletivo, apropriada para interesses privados com pequenos negociantes ambulantes, mesas de bares, quiosques regulamentados ou não, estacionamento, população volúvel em transito. Durante a noite poderá ser apropriada por prostitutas, usuários de drogas e outros grupos que em força e comportamento impedem o uso comum e coletivo, embora isso não seja uma apropriação pelo capital. A praça pode ser um espaço de coexistência conflituosa ou não. Há lugares públicos que a presença de uma ou mais pessoas é aceita, bem vinda automaticamente sem conflito ou mediação, é o caso de uma ambulância, da polícia defendendo direito à vida, o bombeiro, a equipe de limpeza ou um grupo ou pessoa levando arte para seus principais usuários.


f) De todos – ser de uso de todos é apenas dizer que um espaço pode ser utilizado por todos, não igualmente, e que deveria imperar a coexistência democrática, contudo isso é sempre um espaço de mediação dolorosa. Ser de todos, no entanto, quer dizer para alguns que não pertence a ninguém. Deste modo algumas pessoas ou grupos se servem da palavra "todos" invertida em seu sentido para se servirem dessa falsa impressão e apropriar dele com interesses privados.


f) Civil temporário ou permanente – este sentido de civil está relacionado com uma dimensão do Direito à Cidade, de transformá-la, seja o espaço privado, comum, coletivo, de coexistência/conflito. Se verifica aqui que o sentido de civil extrapola qualquer fronteira, assim, em essência um espaço privado pode se tornar civil quando as pessoas nele passam a reivindicar alterações ligadas aos direitos. Os espaços públicos, coletivos e democráticos devem ser sempre civis, pois neles é que a sociedade tem a oportunidade imantada e intecionalizada para a mudança favorável ao Bem comum de todas e todos e todas as gerações.


g) de/da/na/para e com a Rua – Embora cada uma dessas preposições digam algo importante, o sentido que procuramos desenvolver e que carrega nossa preocupação é fazer ações culturais COM a rua ou com a classe trabalhadora, sem dar um valor superior à arte e sobre quem a faz. O artista é um trabalhador e sua ação é a identidade que ele tem com os demais trabalhadores, ainda que atuando no imaginário e conteúdos e resultados não valoráveis.


Nosso propósito é o de entender que o espaço é uma manifestação permanente de poderes individuais ou coletivos. O interesse aqui é o de afirmar que um espaço tem potencial de ser civil a qualquer momento e quebrar conflituosidades e coexistencialidades que não interessam ao Bem comum com efeitos e resultados construtores de democracia e respeito à humanidade.


Insere-se então o papel do Movimento de Teatro de Rua, não como único capaz disso, mas o que potencialmente tem-se arrogado essa função em seus debates. Do mesmo modo, não se pode dizer que todos dizem ter essa intenção alcançam seus propósitos. E, ainda, mesmo artistas de rua que não se interessam por nenhum desses propósitos podem realizar esse trabalho melhor dos que tentam aplicá-lo em suas ações artísticas.


Toda essa argumentação tenta aperfeiçoar a terminologia "arte pública" trabalhada por Amir Haddad afirmando que ora ela é suficiente ora não é. A arte pública diz pouco de seu propósito, pois ela deixa o direito de intervir ou não no direito à cidade no sentido amplo. Não é o Teatro de Rua organizado que busca o direito de usar particularmente os logradouros públicos, mas sim por ser ele um elemento que pressupõe em sua ação, ainda com defeitos e confusões, estimar que os espaços, em geral, devem servir civilmente à melhoria da democracia.


A maioria de nossas ações anti-privadas são políticas em si. Ser na/para/ a rua é potencialmente político. Ser com a rua é ser incluído horizontalizado, mesmo que parcialmente, favorável e intimado a ser igualmente responsável pela busca do Direito à Cidade.


Muitas peças encenadas pelos diversos grupos de teatro de rua organizados ou não tem tido esse êxito de ser civil. Ser uma arte pública apenas diz politicamente por se oferecer acessível para quem desejar prestigiá-la e mesmo com avanços positivos, não avança ser uma arte civil.


A ideia de arte pública cabe dizer que ao ser exposta ao público não pagante deveria ser sustentada pelo Estado. Isto não é errado. No entanto, não quer dizer que ser exposta ao público não pagante resolve o esforço de ser arte que instiga a civilidade. A arte na rua pode ser vista por todos, mas a linguagem utilizada pode torná-la inacessível ou ambiguamente compreendida por se ater a formas e essência que o público comum não é capaz de penetrar e partir para uma reflexão qualquer. Tal coisa nos reduz a entretenedores, situação que não é a buscada em nossas discussões, supondo-se que não se escapa disso quando a relação não é autoritária com o público.


As encenações de rua podem ser encaradas como bem sucedidas nos termos da liberdade de pensar, quando não bloqueiam o pensamento, quando permite a reflexão autônoma e quando espanta o rigor fundamentalista para o convite a valorizar o esforço humano coletivo e para a justeza social.


O receio da sociedade do capital com as encenações de rua é que também há uma re-significação espacial dos logradouros públicos de forma temporária. Nas atuações do Movimento de Teatro de Rua é comum verificar que se re-significa também o tempo desses locais públicos. Então, ao apropriar-se temporariamente de um espaço público para realizar o teatro, já é político, nem sempre civil ou público. Potencialmente se estará nessa situação mudando a forma de uso do tempo e espaço desses lugares que se transformam em reinos, fazendas, praças e o que o imaginário dos artistas e público se convidarem a viver.


A experiência de arte na rua não é controlável ainda que estritamente engajada por valores socializantes ou captulantes. O fato é que ao mudar o sentido do espaço e do tempo em locais dominados pelo capital estar-se-á provocando uma ação objetiva e subjetiva contra a temporalidade e espacialidade da acumulação.


Tuan trabalhou com o termo topofilia que como foi adiantado é como nos definimos por afinidade e afetuosidade pelos espaços. Tanto é assim que lugar e local são definidos de forma diferente. Uma rodoviária é um não-lugar ou local até que uma experiência de despedida de alguém nos faça lembrar e viver nesse espaço como um lugar afetivo em nossa memória. Lugar é afeto, local é indicação, nomeação ou situação e localização sem correlação com sentimentos.


O Teatro de Rua e outras artes quando são exercidas de forma generosa e constante em logradouros públicos caminha para fazê-los deixar de ser um local para se tornar um lugar para as pessoas que pararem seu cotidiano para ver a ação cultural.


O que se dirá aqui não é capaz de definir o que seja arte ou cultura, mas a arte e a cultura permitem uma "suspensão da realidade". Suspender não é fugir da realidade, mas tomar fôlego no imaginário para entender o positivo e negativo do nosso cotidiano. A suspensão da realidade, já contém um teor político, mas fica mais agressivo esse direito humano quando é feito na rua e em locais públicos por sua inerente e parcial acessibilidade.


A raiva contra o teatro de rua é porque atrasa o tempo e o espaço da acumulação, ainda que oferecido de forma pública, e mesmo que não provoque a ação civil. Os efeitos são imprecisos e por isso antiautoritários, ainda que o teor cultural esteja filiado à orientação dos direitos humanos. Em razão dessa impossibilidade objetiva de transformar a cidade e imprecisão de seus efeitos que torna o Teatro de Rua mais detestável para a sociedade capitalizante, afinal, se instiga outro uso do espaço e do tempo da cidade e da forma como passamos a gostar e lutar por essas experiências.


Essas ações contribuem com a saúde mental e física da população volúvel que se fixa alguns momentos para ver o Teatro de Rua. Ser em palco em locais fechados estará limitado por barreiras que são inacessíveis, mesmo quando a entrada é franca. Nesse eixo está implícita a discussão avançada posta por Alexandre Mate sobre a diferença entre público e plateia. Ainda que se conceda que a formatação de um espaço possa e em alguns casos é uma disposição autoritária, talvez não seja o espaço que faça a pessoa ser condicionada como público ou plateia, mas a relação dos sujeitos culturais para com os cidadãos.


O Teatro de Rua e outras ações culturais realizadas em locais públicos promovem um processo de questionamento comportamental, de reflexão, de politização e de emoções ao alcance de quem decide parar e vivenciar o imaginário oferecido e permite a essas pessoas criar o próprio imaginário dessas experiências culturais distintas ou semelhantes às suas referências cotidianas. Deve ser reconhecido que o teatro e outras artes em ambientes fechados e controlados podem provocar efeitos modificadores positivos, porém, de acessibilidade restrita.


Esta dimensão subjetiva odiosa é que justifica as retaliações do Estado (prefeitura, governos estaduais e governo federal) às políticas e ações culturais que favorecem a arte pública e civil desses atores culturais que optam pelo espaço público, enquanto são condescendentes e até permissivos com o teatro controlado por paredes, portas e institucionalidades.


A arte com a rua melhora a tão almejada segurança pública, pois na construção de uma coexistencialidade prazerosa, combatemos a violência em processos lentos e progressivos. Destrói-se ou delimita territórios da violência concretos e imaginários contribuindo com a segurança pública sem a necessidade policialesca ostensiva como resultado da melhora da coexistência social e apropriação pública do espaço. Todos sabem que é mais interessante para o capital investir em polícia por sua ambiguidade em defender pouco e controlar violentamente a ação civil quando ela insurge na busca de direitos.


Transformar locais em lugares é fazer as pessoas gostarem da cidade e por ela tenderem a lutar para garantir esse gosto, afeto de viver e assumir o direito democrático à Cidade.

           


[1]             Nas cidades, o movimento da juventude "imobilizada". Le Monde Diplomatique Brasil -Julho de 2011).
[2]   Acessível em: http://www.actionaid.org.br.
[3]   Direito à Cidade - David Harvey  acessível em: http://deriva.com.br.
[4]   TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980. 

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