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quinta-feira, 17 de novembro de 2011

O caso USP: para escapar de uma estratégia barata



O caso USP: para escapar de uma estratégia barata

*Fábio Salem Daie


Ultimamente, têm vindo à tona informações desabonadoras - textos e fotos - sobre manifestantes ligados ao movimento estudantil que, contrário à presença da Polícia Militar no campus, decretou greve na Universidade de São Paulo. Essas informações, isolando ações individuais e retirando-as do contexto, têm servido ao propósito de enganar o leitor, deformar os fatos e baratear uma discussão profunda sobre um dos maiores patrimônios do país.

Primeiro de tudo, é preciso dizer que isso é normal. Há, sim, erros, e não duvido que os estudantes tenham qualquer problema em admitir isso, desde que se jogue limpo. De uma certa maneira, todo movimento de grande porte sofre com desvios individuais que, por mais que tentem ser minimizados, são impossíveis de se prever e de ser evitar completamente. Tais desvios são, geralmente, causados por uma necessidade de amadurecimento político e experiência, coisa mais do que esperada quando a juventude inicia sua jornada pela prática política.

No entanto, a oposição à luta por uma USP mais democrática e aberta toma esses "exemplos isolados" e os expõe ao julgamento público de forma enviesada e burlesca: estudante com processos criminais, fotos de um com "baseado", o terceiro subindo no carro da polícia, etc. É uma estratégia para colocar em xeque, por meio de poucos, a credibilidade de todo o movimento, ainda que esse tenha reivindicações profundas e coerentes. Ataca-se as pessoas, indivíduos, em detrimento do movimento estudantil e de suas ideias 

O que tem sido veiculado é, portanto, uma imagem - completamente distorcida - dos estudantes como "maconheiros" e "playboys sem causa". A realidade, no entanto, é bem outra. Grande parte dos alunos da USP - sobretudo nos cursos de humanidades - provém de um estrato social modesto (muitas vezes pobre), e não por outro motivo muitos vivem no próprio Crusp (o Conjunto Residencial da USP) e almoçam e jantam por R$ 1,90. Para quem acha que isso ainda constitui alguma regalia - como têm divulgado por aí -, há que ir checar os cubículos do Crusp e saber que o prato de todos os dias é arroz e feijão, acompanhado de uma carne ou ovo. É completamente irresponsável, como tem sido feito, citar que a sociedade paga casa e comida aos estudantes sem citar de ondem provêm, como é essa casa e como é essa comida. Ninguém está ali de regalia.

Ainda assim, quando o Batalhão de Choque invadiu o campus, na madrugada do dia 8 de novembro, não hesitou em lançar bombas de gás num ambiente de trabalhadores e crianças que estavam dormindo. Muitos perderam a hora no trabalho, porque o Batalhão fechou as portas dos prédios, para que ninguém descesse. Os relatos de todos são de que, dentro da reitoria, amordaçaram uma das ocupantes, agrediram outros. Nenhum dos policiais tinha qualquer identificação.

Nesse vídeo de três segundos - http://www.youtube.com/watch?v=MT63ogYJ9gQ - a aluna grita "estou sendo agredida", e o policial responde, "ainda não". Questão: visto que qualquer celular possui câmera hoje em dia, curioso que os alunos não tenham aparecido com nenhuma outra gravação da entrada dos policiais. Por quê? A polícia não deixou ninguém sair com gravações internas da reintegração de posse. Por quê? Ninguém diz nada sobre a truculência policial. Vale a pena ler um relato de uma jornalista da USP que estava lá:
http://tiporevista.com.br/desabafo-de-quem-tava-la-reintegracao-de-posse-por-shayene-metri/ .

Por isso que os alunos desejam segurança, mas não esta que está aí, que não serve a ninguém. Os estudantes têm consciência plena de que o problema da atuação da polícia militar não é um problema só deles. Por isso também existe, há tempos, uma proposta de segurança alternativa para o campus, a qual o reitor não deu ouvidos até agora.



A conformação autoritária da USP

No caso dos estudantes tratados como "criminosos" pela mídia, há que ver quantos desses crimes são imputações levadas a cabo dentro do contexto de luta política na USP. Há mais de 20 alunos e cerca de 5 funcionários do sindicato de trabalhadores da universidade, todos processados. Curiosamente, todos estavam em manifestações políticas.

Suely Vilela (antiga reitora) e João Grandino Rodas (atual reitor) têm se esforçado por tratar questões de caráter político dentro da USP como crimes comuns, o que é uma maneira de esvaziar as reivindicações dentro da universidade. Para isso, contam, entre outras coisas, com um Estatuto grandemente anti-democrático e um Regimento Disciplinar que data de 1972, legado da época da ditadura e ainda utilizado para coibir movimentos e protestos no campus. Dentro do Regimento, por exemplo, são processáveis infrações "à moral e aos bons costumes" (inciso IV, do artigo 250, no link a seguir: http://www.usp.br/leginf/rg/d52906.htm ). Muitos alunos têm sido "enquadrados" sob esta rubrica, herança militar, da qual a administração não se acanha em fazer uso.

Esse inciso, entre muitos outros, ainda é válido, constituindo apenas um aspecto da herança dos "anos de chumbo". Outro dispositivo pouco democrático é a constituição do Conselho Universitário, instância máxima que rege os grandes assuntos da universidade: da contratação de professores à criação de cursos, passando pela gestão do orçamento: http://www.usp.br/leginf/estatuto/estatuto.html#a15. Note-se que o presidente do Conselho é o próprio reitor.

No Conselho, dos cerca de 100 integrantes, cerca de 70% são professores titulares, uma minoria dentro da universidade. Como diz a jornalista Cristina Charão (na matéria "Conselho Universitário representa uma USP que não existe": http://www.adusp.org.br/revista/35/r35a02.pdf), "quando se toma o conjunto da comunidade USP, que reúne, em números redondos, 95 mil pessoas, têm-se um outro ângulo dessa distorção, pois os professores titulares equivalem a meros 0,87% desse universo".

Os alunos e os professores doutores, as duas maiores categorias dentro da universidade, são uma minoria no Conselho, o que é uma forma de assegurar os interesses de uma "velha guarda" que há tempos dá as cartas lá dentro. Não bastasse, as comissões (Legislação e Recursos; Orçamento e Patrimônio; Atividades Acadêmicas), importantes órgãos da administração, são compostas na imensa maioria pelos titulares, boa parte também diretores de unidade (ou seja, dependentes, administrativamente, das benesses da reitoria).

Em reportagem de Marina Pastore, do Jornal do Campus, de 2010, Neli Maria Wada, do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp), afirma, sobre a reforma no plano de carreira dos professores: "Quem determina o momento de subir na carreira hoje é a reitoria". Sobre a concentração de poder, o professor Renato Janine Ribeiro diz que "esse assunto é o pior problema da nossa vida universitária, porque o sistema atual é concentrador e dá poder demais à reitoria: um opositor não encabeça a listra tríplice desde 1994".

A "lista tríplice", a qual se refere o professor, completa a estrutura autoritária. Isto porque a comunidade não elege diretamente seu reitor (ela apenas pode apontar uma lista tríplice, de onde o governador do Estado tira sua escolha). No caso, o reitor atual, João Rodas, sequer foi o mais votado, e a decisão do então governador José Serra desrespeitou frontalmente a deliberação da comunidade acadêmica. Então, pergunta: é possível reconhecer esse reitor, se não foi escolhido pela comunidade acadêmica, cuja vontade é ainda mais deformada por mecanismos internos pouco democráticos? E, se não o reconhecemos, como podemos reconhecer o convênio com a Polícia Militar, realizado sem consulta alguma? 

Os argumentos de "é a lei", nesse sentido, são profundamente anti-democráticos, dado que a lei não exprime a vontade legítima de boa parcela da universidade.


A face obscura do reitor Rodas

Alguns não sabem, mas João Grandino Rodas, além de receber o título - inédito a um reitor - de "Persona non grata", pela Faculdade São Francisco, da USP, por desserviços e perseguições políticas dentro do prédio, também é acusado pela mesma de  improbidade administrativa, por ter mudado, novamente de maneira autoritária, a biblioteca da faculdade para um local inadequado. A decisão, além de atrapalhar os estudos dos alunos, causou danos a um dos acervos mais antigos do país. Ana Paula Salviati, do Coletivo Outras Palavras, também lembra que:

"Rodas também é atualmente investigado pelo Ministério Público de São Paulo por haver contratado sem concurso público dois funcionários ligados ao gabinete da Reitoria, sendo um deles filho da ex-reitora Suely Vilela. Contra Rodas também pesam denúncias de mau uso do dinheiro público. E, por último mas não menos importante, Grandino recebeu a medalha de Mérito Marechal Castello Branco, concedido pela Associação Campineira de Oficiais da Reserva do Exército (R/2) do NPOR do 28° BIB. O Marechal que dá nome à honraria, não custa lembrar, foi o primeiro presidente do Estado de Exceção vivido no país a partir de 1964."
(http://rede.outraspalavras.net/pontodecultura/2011/11/07/a-face-autoritaria-do-reitor-da-usp/)


Não bastasse, o mesmo sujeito, que integrou a Comissão de Mortos e Desaparecidos, entre 1995 e 2002, é apontado, num relatório recente da Secretaria de Direitos Humanos, como responsável por votar contra as vítimas da ditadura e como co-responsável pela absolvição de seus algozes: http://www.viomundo.com.br/denuncias/rodas-deu-uma-maozinha-aos-carrascos-de-zuzu-angel.html .



Informações que a mídia não passa

Outras passagens da vida de Rodas e da atuação da Polícia Militar na USP e em toda a cidade já estão sendo levantadas por comissões de estudantes, como parte das atividades de greve. Afinal, os alunos não estão parados. Ao contrário, estão mobilizados em assembleias, comissões e atividades as mais variadas pela construção de uma universidade verdadeiramente pública.

Entre os eixos políticos que esse movimento defende, estão:

1. Retirada de todos os processos movidos contra estudantes por motivos políticos!
2. Fora PM! Pelo fim do convênio da USP com a Secretaria de Segurança Pública.
3. Liberdade aos presos e nenhuma punição administrativa ou criminal!
Fora Rodas!
4. Outro projeto de segurança na USP! Que a reitoria se responsabilize por:

*Plano de iluminação no campus;
*Política preventiva de segurança;
*Abertura do campus à população para que tenhamos maior circulação de pessoas;
*Abertura de concurso público para outra guarda universitária, que tenha treinamento para prevenção dos problemas de segurança e com efetivo feminino para a segurança da mulher;
*Mais circulares;
*Circular até o Metrô Butantã.

Entre as bandeiras:

1. "10% do PIB para a educação pública já!"
2. "Fora PM violenta de toda a Sociedade" – divulgação desta bandeira na grande mídia;



Algum grande veículo de comunicação divulgou isso? Pouquíssimos. Faz semanas que os alunos gritam essas reivindicações aos quatro ventos... E nada! A mídia não quer saber de discutir esse pontos. As pessoas, mal informadas, tomam posições que favorecem a postura mais fechada diante da universidade, que pouco faz pelo acesso da população à maior universidade da América Latina. Assumem, assim, o lado elitista da luta, muitas vezes sem o saber. Como o debate sério não pode ser realizado sem o prejuízo de que isso venha à tona, os conservadores atacam dessa forma: colocando a foto de um estudante, acompanhada dos processos judiciais, sem contexto algum. É a maneira mais eficaz - e cínica - de baratear todo o problema e obscurecê-lo.

É um engano!
Muitos estão sendo literalmente ludibriados sobre o que acontece na USP.

Esse é um dos motivos pelos quais o movimento grevista tem defendido, como método de votação, o formato de Assembleia. É do entendimento desses estudantes que esse é o único meio de garantir três fatores centrais para a democracia no campus: informação (quando são dados os primeiros informes), formação (feita durante os debates que seguem) e, enfim, deliberação às claras (quando todos votam, perante seus pares, informados e fundamentados). Pois bem, muitos cursos não têm feito isso, e suas votações ocorrem em urnas ou, inclusive, pela internet. Isso permite que muitos alunos, completamente mal informados pela grande mídia e pelos mais diversos ambientes onde a cultura política é quase nula, votem despreparados. Não à toa, os que têm realizado esse tipo de votação são cursos que não pararam, como a Medicina e a Engenharia. Também não por coincidência, são faculdades extremamente elitizadas, assistidas, de maneira geral, por estudantes oriundos de extrato social mais elevado.

Sobre a representatividade, atualmente, pelo menos treze cursos estão em greve no campus Butantã. Em números, isto equivale a cerca de 21 mil estudantes (quase metade do campus). Outros, como a Engenharia Aeronáutica, do campus de São Carlos, também declararam greve. Na quarta-feira, 16 de novembro, numa decisão significativa, os pesquisadores e alunos da pós-graduação (mestrandos e doutorandos) decidiram, em Assembleia Geral, decretar greve em apoio ao movimento. Informações seguras estão no site do Diretório Central do Estudantes: http://www.dceusp.org.br/ . Também vale a pena ler um resumo, feito por alunos da ECA, a respeito do contexto da universidade. A UOL republicou em http://noticias.uol.com.br/educacao/2011/11/10/nota-do-facebook-esclarecendo-o-caso-usp-pra-quem-ve-de-fora.jhtm .

É preciso circular essas informações, para que as pessoas se informem corretamente a respeito do que está acontecendo na Universidade de São Paulo, patrimônio de todos. A democracia só é feita pela união das pessoas e a cada hora.

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