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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Banzeirando por Márcio Silveira

SANTOS, Márcio Silveira dos. Teatro de Rua Banzeirando - Longa Jornada adentro pelos Rios da Amazônia. Porto Alegre: Grupo Teatral Manjericão. Pesquisador, ator e diretor. Mestre em Artes Cênicas/UFRGS. Pesquisador, ator e diretor do Grupo Teatral Manjericão. Professor na Educação Básica do Município de São Leopoldo/RS.

RESUMO

A presente pesquisa foi desenvolvida durante o projeto "Banzeirando - Uma Jornada Teatral Pelos Rios da Amazônia", no período de 19/11/2010 a 23/12/2010. Na perspectiva de reflexão acerca do trabalho das práticas de teatro de rua do Grupo Teatral Manjericão/RS em travessia pelos Rios Madeira e Amazonas, entre as cidades de Porto Velho/RO e Manaus/AM. As práticas consistiram em apresentações do espetáculo de rua O Dilema do Paciente, de Márcio Silveira dos Santos, debates e registros por meio de fotografias, filmagens e constituição de um diário de bordo e de terra. Pretendemos aqui, estabelecer conexões do fazer teatral de rua nos dias de hoje, acerca da diversidade de contextos culturais, sociais, políticos e econômicos da Região Norte do Brasil. Tendo por base de reflexão teórica as bibliografias sobre Teatro de Rua, o material produzido no projeto e os conceitos de Teatro do Oprimido de Augusto Boal e a obra Tempos Líquidos, de Zygmunt Bauman.

Palavras-chave: Teatro de Rua. Práticas Teatrais. Banzeirando. Teatro do Oprimido. Tempos Líquidos.

ABSTRACT

This research was developed during the project "Banzeirando - Uma Jornada Teatral Pelos Rios da Amazônia", in the period from 19/11/2010 to 23/12/2010. From the perspective of reflection about the work practices of street theater in Grupo Teatral Manjericão/RS in crossing the Madeira and Amazon Rivers, between the cities of Porto Velho / RO and Manaus / AM. The practices consisted of presentations of the street spectacle O Dilema do Paciente, by Márcio Silveira dos Santos, debates and records through photos, filming and creation of a logbook and land. We intend here to establish connections to street theater today, about the diversity of cultural, social, political and economic aspects of Northern Brazil. On the basis of theoretical reflection on the bibliographies Street Theatre, the material produced in the design and the concepts of Theatre of the Oppressed by Augusto Boal and work net time of Zygmunt Bauman.

Keywords: Street Theatre.
Theatre Practice. Banzeirando. Theatre of the Opressed. Liquid Times.


Os Tripulantes

Fazer Teatro de Rua neste país é uma dificuldade tremenda não só por questões econômicas como também pelas intempéries climáticas. Embora o Grupo Teatral Manjericão tenha realizado muitas viagens, em mais de 13 anos de existência, quando fomos convidados pelo Grupo O Imaginário de Porto Velho/RO para fazer parte do Projeto "Banzeirando[1] - Uma Jornada Teatral Pelos Rios da Amazônia", não tínhamos noção do quanto esta Jornada poderia significar para nossas vidas. Não só enquanto artistas de teatro, mas também como Grupo, dentro de uma esfera teatral um tanto renegada pela cultura brasileira por tantos anos como o Teatro de Rua. Era um convite que trazia no seu bojo a realização de um sonho que todo grupo teatral deseja concretizar, uma circulação apresentando seus trabalhos e realizando trocas e vivências por um longo período de tempo.

O Projeto idealizado pelo Grupo O Imaginário, contemplado com o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2010/Minc, consistia na realização de apresentações teatrais, debates, roda de memória e vivências no período de 22/11/2010 a 23/12/2010 durante uma jornada pelos Rios Madeira e Amazonas, entre as cidades de Porto Velho/RO e Manaus/AM. O Grupo Teatral Manjericão realizaria apresentações do espetáculo de rua O Dilema do Paciente, direção e dramaturgia de Márcio Silveira dos Santos, com atuação de Anelise Camargo Garcia, Márcio Silveira e Samir Jaime.

A tripulação de artistas consistia nos já citados do Manjericão, representantes do Rio Grande do Sul, mais Chicão Santos, Sidnei Oliveira, Thallisson Lopes, Sidnei Dias, do Grupo O Imaginário de Porto Velho; Tancredo Silva, do Acre; Nivaldo Motta, do Amazonas; Léo Carnevale, do Rio de Janeiro; e o multi-artista e professor Claudio Vrena, de Porto Velho. Já a tripulação barco Nossa Senhora Aparecida, do comandante José Ribeiro, consistia em nove pessoas.

A Jornada resultou em um diário de bordo e terra de sessenta páginas, que fui escrevendo e postando durante a viagem nos blogs do Manjericão e do O Imaginário, além de sites ligados ao teatro de rua como o da Rede Teatro da Floresta. Procuro aqui, através de trechos destes relatos, estabelecer conexões do fazer teatral de rua e sua relevância nos dias de hoje, a partir da diversidade de contextos culturais, sociais, políticos e econômicos que encontramos na Região Norte do Brasil.

O Inicio da jornada

Após dois dias intensos de preparação para a partida, com grandes temporais dificultando o transporte de materiais dos grupos para o barco, conseguimos zarpar em direção a localidade de Cujubim Grande, Distrito do Município de Porto Velho. Nas primeiras intervenções do Banzeirando. Percebemos porque O Imaginário convidou estes grupos com espetáculos pequenos e poucos integrantes para a Jornada teatral. São localidades pequenas com escolas, ruas, espaços culturais que não permitiriam espetáculos com necessidade de grandes locais para se apresentar e muitas foram de difícil acesso, tendo o deslocamento do elenco, saindo do barco até o local da apresentação, feito numa espécie de canoa de metal motorizada, conhecida como Voadeira. Embora os locais sejam pátios escolares, praças e ruas estreitas, e de difícil acesso, o público compareceu em grande volume. Demonstrando mais uma vez, a exemplo da circulação do Grupo Vivarte/AC[2], do quanto o teatro de rua é importante em situações como esta para evidenciar dados que não constam nas pesquisas e estatísticas do número de público nos teatros. Como apontam Licko Turle e Jussara Trindade (2010: 125)

O Teatro de rua se faz em toda parte... O público que assistiu às apresentações do Vivarte é justamente aquele que não aparece nas estatísticas do IBGE, por isso o relato adquire importância fundamental: ele demonstra que os índices divulgados nas pesquisas oficiais são baseados em dados equivocados, que levam em consideração apenas os freqüentadores do chamado edifício teatral - enquanto que, do lado de fora, o teatro de rua dá acesso a todos os cidadãos, sejam estes moradores de grandes metrópoles ou comunidades ribeirinhas da imensa Amazônia.

Em algumas localidades pequenas como a cidade de Uricurituba/AM, tínhamos a impressão que apresentávamos para todas as pessoas que ali moravam. Não só pela quantidade máxima de pessoas que couberam no espaço fechado, que optamos devido à ameaça de chuvas, mas também pela quantidade do lado de fora. Em outra cidade como Nova Olinda do Norte/AM, apresentamos na praça central, durante as apresentações que foram divididas em duas noites seguidas, havia tantas pessoas que mal conseguíamos encenar na roda que aos poucos diminuía. Muitas intervenções do Projeto Banzeirando tornaram-se a grande ou a única atração cultural do ano nas localidades.

Outra questão de destaque foi à diferente reação do público diante dos espetáculos, seja nos momentos de participação nas cenas como também fora de cena. No oitavo dia da jornada, apresentávamos O Dilema do Paciente no distrito de Calama/RO e o ator Samir Jaime improvisou uma cena primorosa. Há um momento em que o palhaço Brigela vai ao segundo médico para consultar, (o espetáculo em suma é uma crítica mordaz a saúde pública e privada no Brasil), contextualizando, Samir chamou três meninos e criou corporalmente uma Voadeira. A intenção era se deslocar imaginariamente até o posto de saúde, que nas localidades muitas vezes o atendimento é só no fim de semana. O público delirou com aquela interação ator e público, fator fundamental pra aproximação de ambos. Era visível o fazer teatral por parte daquele que nunca fez que não teve acesso a atividades culturais como o teatro. Que dadas às proporções tange o que Boal abordou com o Teatro do Oprimido, "... seu principal objetivo: transformar o povo, espectador, ser passivo no fenômeno teatral, em sujeito, em ator, em transformador da ação dramática." (1975:126)
Ou buscando uma conceituação mais atualizada, como propõe Desgranges (2006:77).

..talvez se possa conceber o Teatro do Oprimido como o teatro dos excluídos das práticas efetivamente democráticas, quem sabe o teatro do sedado pela espetacularização e a banalização promovida pelos veículos de comunicação de massa, ou o teatro dos sem oportunidade, (...), sem acesso aos bens culturais, dos sem arte, o teatro dos sem teatro, o teatro dos sem imaginário – ou melhor, dos que se indignam com o freqüente e amplo veto ao imaginário, que inviabiliza a possibilidade de formular sonhos próprios -, daqueles que, impedidos no presente, se sentem incapazes de reaver o passado e construir o futuro.

Samir Jaime depois desta improvisada cena, passou a adaptá-la nas demais apresentações do espetáculo, sempre procurando contextualizar no tipo de condução, como moto, carroça, jegue, carro, avião. Ou seja, não só criou uma nova cena como também se coloca em situação criativa toda vez que exercita o seu oficio.

O meio da jornada

Certa noite, já no barco após apresentações, o ator Nivaldo Motta estava parado como estátua olhando para o nada. Perguntei se estava bem, e após chorar, com a voz embargada, relatou o seguinte:

Hoje de manhã naquela escola tive uma experiência inesquecível! Estava já pronto de Dorminhoco, na cozinha esperando a deixa do Léo pra entrar em cena, quando levei um susto com alguém me agarrando às pernas e apertando com força quase me derrubando no chão. Olhei ligeiro e vi uma menininha muito pequena agarrada nas minhas pernas na altura dos joelhos. Ela me olhava com olhar de surpresa e alegria e me perguntou: - Tu é de verdade? Rapaz, aquilo me arrepiou! Me passou pela cabeça tudo que tu possa imaginar. Enquanto respondia que sim, me perguntava qual seria a referência daquela menina sobre palhaço. Com certeza ela nunca viu um na vida, só pela televisão ou livros de colorir. Eu tava ali, real, verdadeiro. Então comecei a entender mais ainda a importância deste projeto, do que estamos fazendo aqui no norte do Brasil, dentro da Floresta Amazônica. Eu ralo pra caramba. (...) Às vezes não sou tão valorizado, até minha filha não dá tanto valor ao que faço, justamente por não ter esta noção, o valor desta vida que levamos. Tô muito feliz com tudo isso![3]

Este trecho do diário de bordo mostra o quanto estávamos em um local distante, aonde muita informação só chega via televisão, e quando a há sintonia de canais. Provavelmente foi uma criança que não teve até ali contato com o teatro em sua formação, ou se teve foi em meio a imagens televisivas recheadas de outras noticias que geralmente são pautadas pelos interesses de grandes de empresas visando o lucro. Ou são pautadas por assuntos que produzem insegurança e medo diante do mundo real fora da telinha. Revelam "a miséria humana de lugares distantes e estilos de vida longínquos, são apresentadas por imagens eletrônicas e trazidas para casa de modo tão nítido e pungente, vergonhoso ou humilhante.." (Bauman, 2007:11).

Nesta relação profícua durante a jornada, os grupos também procuraram trocar muito de seus conhecimentos e experiências. Conversávamos demoradamente sobre a presença cênica do ator, ações psicofísicas, transiluminação, corpo sem órgãos, biomecânica, commedia dell'arte, antropologia teatral, distanciamento, didática da cena, a explosão do espaço cênico (rua), entre outras. Obviamente muitos caminhos semelhantes e muitas vontades idênticas, tanto na teoria/prática quanto nas dificuldades de manter um trabalho continuado, pois para sobreviver é necessário ter espaço físico e correr atrás de editais, prêmios e eventos cênicos.

A dificuldade maior em se produzir qualquer tipo de cultura no norte do país, se deve ao "custo amazônico". Um valor alto nos produtos comerciais que diferencia do resto do país. Para se comprar qualquer produto, podemos acrescentar no mínimo 50% acima do valor "normal" do resto do país. Um quilo de feijão pode custar até próximo de dez reais conforme a localidade. Há estudos que se o justificam com base em duas dificuldades: o alto custo de combustíveis, para levar os produtos até os lugares mais distantes, e a indisponibilidade de transportes para isso. Em muitos locais só são possíveis de chegar via barco ou avião. O povo do norte sofre pesadamente com essa questão. O custo de vida oscila muito conforme a cidade, se torna impossível sobreviver, o que gera assim um êxodo constante.

O fim da jornada

Dentre muitos fatores de dificuldades e surpresas, tivemos um acidente mais para o final. O Rio Madeira tem esse nome em função da quantidade de árvores que flutuam rio abaixo, devido às cheias e ao assoreamento pela exploração de minérios. Muitas destas árvores são como icebergs, escondem a maior parte do seu tamanho e foi nesta situação que a embarcação sofreu uma brusca batida que ocasionou a quebra de boa parte do equipamento de navegação. Navegamos durante dias pelos rios Madeira e Amazonas com metade da potencia, chegando a Manaus/AM, o barco foi içado para fora da água, para ser concertado enquanto realizávamos um cortejo no centro da cidade encerrando o Banzeirando.

Considerações Finais

O crescimento de um artista passa pela vivência. O que de fato ocorreu em cada uma das localidades. Nossa maturidade se desenvolveu de sobre maneira diante das adversidades e surpresas. Aprendemos muito e a transformação que sempre almejamos para aquele espectador atento a nosso trabalho se voltou para nossas vidas e nelas causou mudanças severas e generosas.
Hoje podemos dizer que conhecemos um pouco das intempéries de se viver no norte do País. Como a incomunicabilidade, a dificuldade de locomoção e transporte de pessoas e produtos, os valores altíssimos de tudo, que geram um novo termo econômico-social e cultural, o Custo Amazônico! No entanto diante deste quadro não muda a relação humana deste povo entre si e com os visitantes. Não medem o tempo pra dividir a mesa farta e uma roda de memória onde contam todas suas vidas e os causos, mitos e lendas da região. São histórias e vivencias que ficaram gravadas na história e marcaram época.

Referencias

BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

DESGRANGES, Flávio.  Pedagogia do teatro: provocação e dialogismos. São Paulo: Hucitec, 2006.

TURLE, Licko; TRINDADE, Jussara. Teatro de rua no Brasil: a primeira década do terceiro milênio. Rio de Janeiro:E-papers, 2010.

Blogs e Sites



[1] Banzeirando significa o movimento das águas a partir de uma ação sobre ela. Aquelas ondulações provocadas por um barco, pelo vento, pelo barranco que desmorona, pelo boto que salta e mergulha novamente, pelo ser humano que se banha, pelo teatro que navega e se desloca respeitosamente pelos caminhos da Floresta Amazônica.
[2] O Grupo Experimental de Teatro de Rua Vivarte/AC, realizou o Projeto Circuito do espetáculo O Casamento da Filha do Mapinguari, em dezembro de 2009, pelas comunidades indígenas e ribeirinhas do rio Purus/AC. Projeto contemplado com o Prêmio Artes Cênicas na Rua/Funarte/Minc.
[3] Leia o relato na íntegra no blog http://grupoteatralmanjericao.blogspot.com

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