Na ultima sexta feira, dia 16 de março, nós do Rosa dos Ventos (P. Prudente-SP) tivemos um encontro em Santos-SP com a galera do movimento teatral santista e lá ouvimos o relato do também visitante Marcos (Núcleo Pavanelli/São Paulo) sobre a lei das artes de rua da capital paulista. Ele falou de ambiguidades da lei e dos equívocos que acompanham sua discussão na cidade. Embarcando no que Marcos disse, lanço algumas questões que, espero, ajude a situar o problema. ...Nesses últimos tempos tem sido comum a repressão policial com expulsão muitas vezes violenta de artistas de rua das áreas centrais de muitas cidades brasileiras – os relatos nesta Rede [RBTR] são muitos e atestam isso. Ao mesmo tempo observamos o surgimento de decretos e leis municipais para regulamentam as artes de rua. Esse é o contexto geral. Essa repressão não é um fato comum a toda a cidade, mas apenas as suas áreas centrais, especialmente os centros antigos ou históricos, que são hoje muito populares e atraem artistas de rua que ali encontram público para desenvolver sua arte e sobreviver dela. O que está por trás da repressão aos artistas de rua é a estratégia das elites de restabelecer esses espaços – no passado abandonados por elas e assim popularizados, para elas "degradados" – em seus circuitos de negócio e vida além da busca dos altos lucros imobiliários decorrentes (capital imobiliário abocanhando a gigantesca mais-valia urbana). Esse processo também contribui para a nova imagem-identidade da "cidade" que se quer projetar, vender para dentro e para fora (o mundo). Na literatura de urbanistas, sociólogos e geógrafos todo esse processo é conhecido como "gentrificação", denominação cuja raiz da palavra inglesa – gentry – evidencia seu caráter de classe, aparecendo no discurso oficial escondido atrás de palavras como: (planos de) revitalização, requalificação, reabilitação, revalorização, etc., que no fundo se destinam a promover gentrificação, isto é, a retirada das camadas mais pobres de um espaço, destruindo seus lugares de moradia, consumo, lazer, trabalho, cultura etc., para dar lugar a chegada das pessoas mais "nobres" e suas atividades. A gentrificação de áreas centrais de valor histórico e cultural é capítulo central da política urbana hegemônica e agora segue impulsionada por grandes obras e operações urbanas pagas com dinheiro público por ocasião da realização dos grandes eventos esportivos da Copa e Olimpíadas (Rio de Janeiro).[1] Frente à mobilização e manifestação dos artistas de rua em escala nacional (como a desencadeada pela RBTR) e local contra a repressão das artes de rua o poder público respondeu imediatamente com a perspectiva de elaboração leis e decretos para regulamentar essas atividades no espaço urbano, novamente sob a argumentação de combater a (ideológica) "desordem urbana". Ao poder público essas leis e decretos servem antes para dizer que está tratando da questão, enquanto artistas de rua ao lado de outros trabalhadores continuam tendo seus direitos cerceados em espaços públicos. Ou seja, o poder público responde assim ao problema com uma ideia (leis e decretos) e não com uma ação concreta de garantia dos direitos civis, extensivamente violados nesses espaços. É possível observar – e há juristas que dizem isso – que essas leis e decretos surgem para disciplinar o que em tese não deveria ser disciplinado, de vez que seu objeto não é mais que o exercício de um direito fundamental previsto na Constituição Federal e que, portanto, deveria ser compreendido em seu sentido ampliativo e não restritivo como aponta a elaboração dessas leis e decretos. Melhor dizendo, não há por que estabelecer regras e normas para o trabalho do artista de rua no espaço público quando sua atividade não ultrapassa o que é já reconhecido direito de todo cidadão. E é justamente isso que explica porque muitos artistas de rua conseguiram mandado de segurança assegurando seu direito de trabalho em espaço público. O ponto é: o que deveria SIM ser discutido abertamente com a sociedade para então ser objeto de Lei não o é porque não é para ser orientado pelo interesse público: a referência aqui é à realização de eventos diversos (espetáculos comerciais, culturais, esportivos, religiosos etc.) que envolvem a instalação de mobiliário em espaço público com interdição parcial ou total de vias e uso de som em média ou alta potência. As autorizações para esses eventos são decisões pessoais de dirigentes públicos, portanto não obedecem a nenhum critério público, universal, predominando nesses casos os interesses privatistas e de marketing urbano associados. Minha provocação é sobre o papel dessas leis e decretos como mecanismo de estímulo à arte pública em contexto de gentrificação. Que arte pública? Essa dimensão pode ser depreendida dessa política que tem no elemento cultural importante papel econômico e "civilizador". Muitos grupos de teatro de rua e outros artistas podem se beneficiar da elitização e turistificação de espaços públicos de áreas centrais, fazendo parte de sua programação cultural, todavia em detrimento da presença (do direito) de muitos outros artistas populares não aí bem vindos por seus trajes, tipo de arte, relação com o público etc. Enfim, essas leis e decretos parecem indicar a estetização desses espaços e da arte pública nele realizada.
Luis Paulo Valente
[1] O dossiê "Mega-eventos e violações de Direitos Humanos no Brasil", produzido por pesquisadores, acadêmicos e movimentos populares indica que mais de 170 mil pessoas terão seu direito de moradia violado ou ameaçado em conseqüência dos mega-eventos no Brasil nos próximos anos. Imensas áreas públicas centrais das cidades estão sendo destinadas através das chamadas Parcerias Público-Privadas a realização de operações urbanas que, na verdade, são operações imobiliárias, em clara "suspensão" da Constituição Federal que diz que áreas públicas devem ser destinadas prioritariamente a produção de habitação de interesse social. Confiram o dossiê em http://www.portalpopulardacopa.org/.
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