Existe um profundo desequilíbrio entre homens e mulheres nas sociedades atuais. Os exemplos são numerosos: é comum as mulheres receberem salários inferiores aos dos homens para as mesmas funções; elas são vítimas de violências físicas e psicológicas pelo simples fato de serem mulheres; na divisão das tarefas sociais, geralmente são destinadas às mulheres as funções de limpeza (na casa e no trabalho) e de cuidados; é frequente o tratamento preconceituoso nos meios de comunicação, em particular na publicidade, mostrando a mulher como objeto de consumo masculino; nossa legislação é arcaica, impondo ideias como a de maternidade compulsória e criminalizando as mulheres que praticam a interrupção voluntária da gravidez; o número de creches é insuficiente, confinando as mulheres ainda mais ao lar; mulheres em cargos políticos e de comando ainda são exceções, no Congresso Nacional, por exemplo, elas representam apenas 10%; a livre orientação sexual não é respeitada e preconceitos são tolerados; muitas mulheres cumprem jornadas duplas ou triplas de trabalho.
Por que é tão urgente e necessário explicitar e enfrentar todas estas dificuldades? E mais: pode o teatro dar conta de um tema como desigualdade de gênero e apresentar possibilidades de transformação social?
Com relação à primeira pergunta, parece óbvio que não é possível aceitar qualquer tipo de desigualdade se o que buscamos é uma sociedade realmente livre e justa. E, no que diz respeito as desigualdes de gênero e sexo, estas tem se apresentado como uma das faces mais cruéis do atual sistema político-econômico (que gera 1 bilhão de famintos e miseráveis, dos quais 70% são mulheres, entre outras desgraças que recaem com maior intensidade sobre o sexo feminino: desemprego, precariedade no trabalho, violência doméstica etc). Um casamento perfeito entre patriarcado e capitalismo.
É neste sentido que o teatro tem como principal função "responder aos perigos de uma época" (como diz o dramaturgo marxista Edward Bond) e lançar as provocações necessárias para que nos tornemos conscientes e atuantes no curso da história, da nossa história e também no entendimento de que a luta por melhores condições de vida para toda-o-s só se faz coletivamente. Portanto, se não estamos satisfeita-o-s com as desigualdades de classe, etnia e gênero e se queremos que as ideias voltem a ser perigosas, em meio a tanta apatia, o teatro – como espaço horizontal, de reflexão mútua, de reunião e assembleia, espaço provocativo e propositivo – pode ser uma ferramenta potente nesta luta de Davi contra Golias.
No entanto, é importante atentar para o fato de que nos jovens países da América Latina, como o Brasil, onde o principal veículo de comunicação e transmissão de "cultura e pensamento" é a televisão comercial (segundo dados da Articulação Mulher e Mídia, menos de 10% da população lê jornal e são baixíssimos os índices de frequentação de teatro, cinema e outras atividades culturais), a formação estética, intelectual e política de grande parte da população está submetida ao controle de alguns poucos grupos econômicos que detém o poder das concessões públicas dos veículos de comunicação. Além disso, os governantes de nosso país preferem destinar quase metade do orçamento federal para o pagamento dos juros da dívida e apenas 0,06% para a pasta da Cultura.
No Brasil, atualmente, arte e cultura são tratadas como mercadorias e estão longe de serem um direito da população (como previsto no art. 215 da Constituíção desde 1988). Diante deste quadro, a disputa simbólica, do imaginário e dos meios de expressão é urgente e esta luta deve unir movimentos artísticos e sociais!
A discussão política sobre as questões que envolvem opressão de gênero, violência contra a mulher e temas afins também estão na ordem do dia – por um lado, uma mulher presidindo, pela primeira vez, o país e, por outro, uma Secretaria de Mulheres (que representa um avanço institucional) com verba ínfima para implementar o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, gestado nas últimas três conferências nacionais. Além disso, é preciso considerar o crescimento da bancada conservadora e religiosa no Congresso que impede os avanços das leis contra as formas de opressão às mulheres, entre elas a necessária discussão sobre a legalização do aborto, uma vez que o número de mortes de mulheres por conta de abortos clandestinos é uma questão de saúde pública e não de moral.
Neste sentido, diversos coletivos artísticos da América Latina vêm dando eco a esta problemática em seus trabalhos. A maneira como a sociedade se apropria do corpo e do espaço social da mulher, com o objetivo de engessá-la dentro de uma ideologia patriarcal, é hoje objeto de estudo de artistas e coletivos como Maria Galindo & Mujeres Creando (Bolívia), Mujeres Publicas (Argentina), The Magdalena Project (Rede Internacional de Mulheres), Jesusa Rodrigues e Liliana Felipe (México), As Loucas de Pedra Lilás (grupo de artistas feministas de Recife), as Obscenas (Belo Horizonte), Atuadoras (São Paulo), entre tantas outras, anônimas ou conhecidas, através das Américas.
Se as dificuldades de produção já são enormes, elas se multiplicam quando coletivos artísticos resolvem tematizar as questões de gênero - como se este assunto não tivesse a menor importância ou as mulheres já tivessem conquistado sua autonomia.
Durante os últimos 4 anos o coletivo do qual faço parte, a Kiwi Companhia de Teatro, enfrentou muitas dificuldade e desafios. Com o projeto artístico Carne – patriarcado e capitalismo nos deslocamos por toda a cidade de São Paulo, buscando os lugares onde o debate sobre a violência contra as mulheres poderia ser útil à comunidade e aos movimentos de mulheres, ao invés de ficarmos no conforto de um espaço cênico tradicional. Esta era uma das exigências de um trabalho com características de agitprop, aliado à consciência política mais abrangente sobre um novo modelo de sociedade, onde toda-o-s possam ter, no mínimo, as mesmas chances de realização como seres humanos.
Este projeto nos fez enfrentar "na carne" os problemas estruturais da nossa sociedade, mas nos mostrou também, ao afirmarmos a liberdade, a justiça e a autonomia e recusarmos os fatalismos, os preconceitos (de raça/etnia, de classe, orientação sexual) e todas as formas de violência impostas às mulheres, que a reflexão coletiva (entre a-o-s artistas, o público e os movimentos sociais) e os recursos que a arte nos oferece podem resultar numa sociedade transformada pela ação de mulheres e homens.
Temos o direito de acreditar que "a vida é boa!" como disse Machado de Assis antes de morrer.
Fernanda Azevedo
Kiwi Companhia de Teatro / Cooperativa Paulista de Teatro
Lembrete: O feminismo não é o contrário do machismo. Feminismo é a luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres.
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