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quinta-feira, 1 de março de 2012

Pode a cultura ser sustentável?

Adailtom Alves Teixeira[1]

A virada do milênio foi uma virada de hambúrgueres para software. Software é uma ideia, hambúrguer é uma vaca. Ainda haverá fabricantes de hambúrgueres no século XXI, é claro. O poder, o prestígio e dinheiro, entretanto, fluirão para as empresas que detêm o indispensável capital intelectual.
P. Coy, Business Week, agosto de 2000 apud A.M. Nicolaci-da-costa.

O capitalismo vive uma crise estrutural e, como já aconteceu antes, ou se acaba com ele ou este se reinventa. O alemão Wolfgang Streeck, em recente artigo No Le Monde Diplomatique (janeiro de 2012, n 54, p. 24-5) afirma que dia após dia os mercados ditam leis aos Estados e que a crise de 2008 começou há 40 anos, no final dos anos 1960. Desde então o capitalismo vem se reinventando, passando por três soluções: inflação, dívida pública e dívida privada. Os grandes problemas ocorridos na Espanha, Grécia, Estados Unidos da América, são frutos dessa última "solução".

No que diz respeito à cultura, esta não escapou a sanha das grandes corporações, que perceberam formas de aumentar seus lucros e agregar valores à sua marca. Chin-Tao Wu, em Privatizações da cultura (2006), analisa como a política neoliberal chegou ao campo das artes. Desde então, podemos dizer que a cultura vem sendo ponta de lança da reinvenção do capitalismo, pois cada vez mais, trata-se de produzir idéias, que são muito mais rentáveis do que os produtos materiais. Afinal, uma peça, por exemplo, é necessário ser produzida para ser vendida, já uma ideia, ao ser criada, pode ser vendida indefinidamente, gerando muito lucro para os detentores dos seus direitos. É nesse campo que se coloca a economia criativa.

A economia criativa, até onde se apurou, começou na Austrália, com a ideia de nação criativa, depois migrou para o Reino Unido, sob a batuta de Toni Blair, o continuador da política de Margareth Thatcher. E se os mercados ditam as regras, claro que o Brasil não podia ficar de fora. Agora nós temos uma secretaria ligada ao Ministério da Cultura: Secretaria da Economia Criativa. A Secretaria foi implantada em janeiro de 2011, portanto, logo no inicio do governo Dilma, deixando claro como a cultura deve ser tratada, como negócio. 

A secretária da economia criativa, Claudia Leitão, ao apresentar as metas de sua pasta, é clara: a cultura tem um papel estratégico no desenvolvimento do Estado brasileiro (disponível em: http://www.cultura.gov.br/site/2011/12/08/metas-da-secretaria-da-economia-criativa/ consultado em 29/02/12). A Secretaria é voltada para pensar e auxiliar na construção de produtos e serviços de dimensões simbólicas, devendo, inclusive, criar marcos legais para que se possa conceder empréstimos aos brasileiros mais criativos. Ou seja, se põe em prática a terceira "solução" do capital: o endividamento privado.

Em artigo publicado no Jornal Brasil Econômico (Disponível em: http://www.brasileconomico.com.br/epaper/contents/BE_2011-12-05.pdf. Planejando um Brasil Criativo. LEITÃO, Claudia. P. 17, 05 de dezembro de 2011. Consultado em 29/02/12), a secretária afirma ser difícil conceituar o que seja economia criativa, no entanto, não deixa dúvidas: "mas nós sabemos onde ela está". Frisa a necessidade de linhas de crédito para fomentar os empreendimentos criativos, pois a criatividade precisa virar inovação, para que esta se torne riqueza. Muito embora, Leitão não se refira para as mãos de quem irá à riqueza gerada. Talvez devêssemos supor que é para aqueles que produzem, mas como historicamente a riqueza tem sempre sido apartada daqueles que a produzem, é bom perguntar e ficar desconfiado.

Para se ter uma ideia do processo de transformação e de implantação da economia criativa, não só por aqui, aproveitei e realizei um pequeno levantamento de materiais teóricos – aliás, entre eles, parece não haver críticas a essa nova benesse que é a indústria criativa ou a economia criativa.

No site do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE, economia criativa é definida como "um novo modelo de gestão e negócios baseado no bem intelectual, e não no industrial ou agrícola" (Disponível em: www.sebrae.com.br/setor/cultura-e-entretenimento/o-setor/economia-criativa.  Consultado em 29/02/12). Ainda no mesmo site é possível obter informações sobre alguns dados mundiais, retirados da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento – UNCTAD. Em 2008, apesar de queda de 12% no comércio global, "os serviços e bens da economia criativa cresceram até 14%. Quem mais produz? China, EUA e Alemanha. O relatório da UNCTAD – para aqueles que dominam o inglês – pode ser obtido em: www.unctad.org/en/docs/ditctab20103_em.pdf.

O site Economia Criativa (www.economiacriativa.com) afirma que a economia criativa, ao focar a criatividade, a imaginação e a inovação, não se restringe a produtos, serviços e tecnologias, englobando também processos, modelos de negócios e modelos de gestão, entre outros. Assim, economia criativa é o mais puro capitalismo. Ainda que se queira dizer o contrário.

A julgar pelos referenciais desse rápido levantamento, a economia criativa vem sendo fundamentada por teóricos que parece não encontrar possibilidades para além do capital. Mais uma vez a ciência dá régua e compasso ao processo de exploração. Cito apenas um exemplo, um livro, que apresenta muitos artigos com teóricos de diversas partes do mundo e o mesmo pode ser baixado da internet e foi gentilmente financiado pelo Itau Cultural, chama-se Economia criativa como estratégia de desenvolvimento: uma visão dos países em desenvolvimento (disponível em: www.garimpodesolucoes.com.br/downloads/ebook_br.pdf). A organizadora é Ana Carla Fonseca Reis, que devido as suas inquietações e navegação pelas esferas do marketing, da economia e da cultura, percebeu que as pessoas não sabem "o valor do que produzem e o preço que praticam", ou seja, as pessoas estão se vendendo mal, poderiam vender melhor sua criatividade. Reis (2008) afirma que os três pilares da economia criativa são a singularidade, o simbólico e o intangível.

A autora, na introdução, logo no primeiro parágrafo, demonstra sua criatividade e nos apresenta uma ideia interessante de como a criatividade pode alimentar o mercado:

Criatividade. Palavra de definições múltiplas, que remete intuitivamente à capacidade não só de criar o novo, mas de reinventar, diluir paradigmas tradicionais, unir pontos aparentemente desconexos e, com isso, equacionar soluções para novos e velhos problemas. Em termos econômicos, a criatividade é um combustível renovável e cujo estoque aumenta com o uso. Além disso, a "concorrência" entre agentes criativos, em vez de saturar o mercado, atrai e estimula a atuação de novos produtores" (REIS, 2008: 15).

Outro documento que faz um levantamento sobre a produção teórica sobre economia criativa, sempre do ponto de vista afirmativo desse processo, é apresentado por Paulo Miguez (disponível em: www.cult.ufba.br/arquivos/repertorio_economia_criativa.pdf). O artigo demonstra o quanto cultura e economia, desde o pós guerra, estão ligados, bem como o processo de transformação dos termos e a ampliação do que eles procuram abarcar. Assim, economia das artes ou economia da cultura, se transforma em indústrias criativas e hoje são ampliadas para o conceito de economia criativa. O autor nos apresenta a definição de indústria criativa dada pelo British Council:

indústrias que tem sua origem na criatividade, habilidade e talento individuais que têm um potencial para geração de empregos e riquezas por meio da geração e exploração da propriedade intelectual. Isto inclui propaganda, arquitetura, mercado de artes e antiguidades, artesanatos, design, design de moda, filme e vídeo, software de lazer interativo, música, artes cênicas, publicações, software e jogos de computador, televisão e rádio (Documento citado à p.11)

Miguez, preocupado com questões econômicas, se pergunta por que o patrimônio e as festas populares não entram na lista do British Council. Ele está particularmente interessado no carnaval baiano e carioca e a festa junina de Campina Grande/PB.

Paulo Miguez afirma ainda que muitos organismos internacionais, inclusive a Unesco, tem realizado debates, produzido documentos sobre o tema e mais adiante apresenta quais interesses estão por trás de tudo isso:

Agregue-se a estes fatos dois números estimados pelo Banco Mundial, os 7% que já representam o peso da economia criativa e das indústrias criativas na formação PIB mundial e os 10% de taxa média de crescimento prevista para o setor nos próximos 10 anos, e teremos, quero crer, uma boa dose de razões para compreender que, doravante, estaremos nos confrontando cada vez mais com esta temática – o que nos obrigará a fornecer respostas tanto teóricas quanto prático-políticas – e de justificativas plausíveis pra dedicar um olhar mais atento sobre a novidade da economia criativa e das indústrias criativas (Documento citado, p. 12-3).

No caso do Brasil, a resposta prático-política veio em forma de secretaria, que deve trabalhar, conforme anunciado por Claudia Leitão, com os demais ministérios, como o de Educação, das Cidades, de Ciência e Tecnologia, entre outros, de forma que a economia criativa alcance e capte todo o potencial do brasileiro. Aliás, em recente encontro em São Paulo a secretária deixou transparecer que esse pode ser o caminho que pode auxiliar a erradicação de 18 milhões de miseráveis.

Como já dito, Paulo Miguez considera a economia criativa uma ampliação da economia da cultura. O objetivo de sua pesquisa foi levantar materiais teóricos sobre o assunto, chegando a 777 fontes. Cabe destacar que de seu levantamento, 384 são sobre economia da cultura e 137 específicas sobre economia criativa.

Economia da cultura, indústrias criativas, economia criativa, trata-se da ampliação da indústria cultural, aliada à indústria do turismo e outros tantos ramos, que, nas cidades, produzem os processos de gentrificação, de espoliação, enfim, capitalismo perverso se adequando aos novos tempos.

Ana Carla Fonseca Reis (2008), afirma que as características da economia criativa são capazes de recuperar o cidadão (inserindo-o socialmente) e o consumidor (inserindo-o economicamente), ela só esquece que já estamos todos inseridos no sistema capitalista e que queremos é sair dele, pois não mais o suportamos.

Enfim, todos aqueles que têm a cultura como um direito, que vê na cultura a prática da liberdade e o exercício da plenitude humana e, por isso mesmo, deve ser para todos sem a mediação do dinheiro, todos que lutam pela emancipação humana, devem combater o atual processo metabólico pelo qual passa o capital. A cultura não pode ser pensada do ponto de vista do desenvolvimento econômico da nação, mas sim, do ponto de vista do desenvolvimento humano, logo, insustentável, pois o resultado que deve apresentar é o de seres humanos melhores.

Espero que este texto sirva, ao menos, para despertar a curiosidade sobre o assunto. Pois, nesse momento, todos que lidam com as artes, ou qualquer outro mecanismo criativo, estão envolvidos até o pescoço com essa reinvenção do capitalismo, mesmo que não saibam e que não queiram.



[1] Graduado em história e mestrando em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp.

2 comentários:

Luiz C. Checchia disse...

Ah, uma questão, Adailton, meu amigo, que é preciso considerar sempre quando se é um militante da cultura e da arte pública: a cultura é uma espera de luta hegemônica, e nela a luta deve ser travada com seriedade e sem temer a profundidade de suas especificidades. Não se trata simplesmente de disputa no "campo simbólico", se bem que ele também faça parte, mas se trata principalmente de escolha entre modelos políticos distintos, e tais escolhas terão consequências que durarão por dezenas de anos. Trata-se de luta pelo futuro. Tal dimensão de luta faz com que ela extrapole os próprios limites do embate do campo da cultura. Há que haver, por parte dos militantes (e isso me parece urgente) uma nova compreensão da disputa política e de análises de conjuntura. O capital mudou, forçando mudanças nas relações e correlações de forças, portanto, a militância também precisa se repensar nas táticas que adota. Sem, é claro, mudar seus princípios e horizontes.

Barja disse...

Grande Adailton! Em primeiro lugar, penso que a cultura pode, sim, ser sustentável. E acho que criatividade é sempre importante. Porém... esse papo de "economia criativa" pra mim é a mesma coisa que "despachante aduaneiro", ou seja, no fundo possibilita-se que "atravessadores" ganhem até mais dinheiro do que os verdadeiros "fazedores" de cultura e arte.
É aquele truque sujo de sempre: cria-se um nome simpático (pô, o nome É simpático) e se monta uma estrutura para legitimar a "novidade" que, no fundo, no fundo... não é grande coisa.
Pra finalizar sem encher muito a paciência: acho que a ideia de financiamento coletivo é muito mais inteligente e potencialmente produtiva. Sigamos em contato, abraço!