"Em que o senhor está trabalhando?" perguntaram ao Senhor K. O senhor K. respondeu: "Eu tenho muito trabalho. Eu preparo meu próximo erro."
Histórias do Senhor Keuner. Bertolt Brecht
A Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR), nascida em março de 2007 na cidade de Salvador-BA, retorna ao Nordeste para mais um encontro de seus articuladores que pode vir a ser histórico. Já se vão pouco mais de cinco anos de muita luta com muitos frutos, derrotas e vitórias. A RBTR, no âmbito teatral, continua a ser o único movimento organizado nacionalmente. Isso não é pouco, sobretudo se pensarmos nas dimensões continentais de nosso país e nos altos custos de deslocamento dos articuladores para participarem dos encontros, na maior parte, com recursos próprios.
Acredito demais na força política desse coletivo – muito embora, acho que ainda seja pouco utilizado em toda a sua potência. Se pensarmos nas diversas ações realizadas em todo o Brasil por grupos e movimentos que são ligados a RBTR, como mostras, congressos, encontros, entre outros, não é pouco o que se tem feito e essas ações dialogam diretamente com as classes subalternas, para utilizar uma expressão gramsciana. Ora, as ações são atos que apontam para uma potência extraordinária: a possibilidade de auxiliar na transformação de toda a sociedade; tarefa que não cabe a um movimento, mas a todos os interessados, sobretudo aqueles diretamente atingidos pelas mazelas sociais.
Desde Platão, em sua obra A República, aprendemos que nós, os artistas populares, não cabemos na sociedade, pois somos a peste, como afirma Amir Haddad. Assim, se o teatro, dito popular, jamais foi aceito pelos mandatários ou dito em outros termos, pela classe dominante – o que nos atinge diretamente –, está claro o nosso lado: os desterritorializados, os "sem história", os subalternos, os trabalhadores. Dessa forma, um encontro de um coletivo com essa potência deveria restringir a discussão apenas às políticas públicas (ainda que não seja pouca coisa)? Ou devemos também debater os rumos da sociedade brasileira? O nosso encontro é sempre político, não apenas porque vivemos em sociedade e estamos em relação, mas porque fazemos parte desse mundo e estamos inseridos em um sistema perverso que mesmo falido, pode levar o ser humano bancarrota.
Com o que trabalhamos? Com o simbólico. Portanto, com a possibilidade de crítica e de transformação do mundo. Somos, ou deveríamos sê-lo, a contra-hegemonia. Hegemonia é mais um termo gramsciano, utilizado para a discussão no campo da cultura; hoje a hegemonia está posta por uma minoria, a classe de privilegiados que domina, impondo sua liderança moral e intelectual. Os artistas de rua têm a possibilidade de ser contra-hegemônico (e muitos são), porque pode apresentar um projeto orgânico, a partir dos de baixo. Somos orgânicos, porque somos povo. A cultura é um campo de disputa, na qual se pode construir – como afirmou Eduardo Granja Coutinho em Comunicação e contra-hegemonia (2008: 9) – "[...] uma visão de mundo capaz de resistir e se contrapor às ideias dominantes". Essa resistência político-cultural é o que Gramsci chamou de contra-hegemonia.
A dialética nos ensina que as análises devem partir do todo para as partes e depois percorrer o caminho em ordem inversa. Logo, se quisermos ser contra-hegemônicos é preciso saber o que ocorre no mundo, isto é, como as "ditas grandes decisões políticas" chegam ao Brasil e como isso se reflete em cada canto do país. A partir disso é possível traçar ações em nossas localidades, ações do movimento como um todo e ações conjuntas com outros parceiros.
O capitalismo é voraz e se transforma rapidamente. Milton Santos, antes de falecer já havia cantado a bola sobre as grandes migrações sociais e sobre os fluxos técnico-informacionais, demonstrando a perversidade da globalização, mas também das possibilidades. As perversidades são mais obvias e já iremos discorrer sobre algumas. Quanto às possibilidades de mudança: as culturas estão cada vez mais misturadas o que leva a uma crise da hegemonia da racionalidade ocidental; novas tecnologias têm sido apropriadas por camadas subalternas, possibilitando certa revanche cultural. Esses são apenas dois aspectos das mudanças.
No campo das perversidades, apesar do neoliberalismo insistir, tem demonstrado a sua incapacidade de sustentação do capitalismo. No entanto, as classes dominantes, aliado aos governantes das nações ditas desenvolvidas e as em desenvolvimento, tem feito de tudo para sustentarem o insustentável. O ataque inicial foi sobre as garantias dos trabalhadores (e continua a ser, diga-se de passagem), bem como com a privatização e a transferência de responsabilidades do Estado para a iniciativa privada – daí a proliferação de organizações não-governamentais (ONGs, Oscips etc.); depois, veio a radicalização com a financeirização econômica, levando a sucessivas crises, até a crise estrutural que vem se arrastando desde 2008, levando a quebradeira de vários Estados Nacionais, como Grécia, Espanha, entre outros. Tudo isso vem sendo pago por quem sempre pagou a conta: os trabalhadores. O Estado brasileiro também vem seguindo a receita ditada pelo grande capital: está endividando a todos e desonerando as empresas, que vem recebendo cada vez mais diversas benesses por meio da isenção de impostos. Tudo em nome da competitividade da indústria brasileira. Além do endividamento (que uma hora será cobrado), os trabalhadores vêm sofrendo outros ataques, como, por exemplo, a desoneração das empresas deixará um vácuo de R$ 7 bilhões na Seguridade Social. O Fundo do Regime Geral da Previdência Social (que pode fazer uma distribuição de renda aos trabalhadores) sofreu com o ataque das renúncias fiscais entre 2005 e 2011 um rombo R$ 114,25 bilhões (Cf. Le Monde Diplomatique Brasil, n. 62, setembro de 2012).
Se o campo técnico-informacional pode representar avanços para todos, já que o conhecimento pode ser partilhado com maior rapidez e facilidade, as ferramentas e as pessoas interessadas nisso vem sendo perseguidas com leis reacionárias em países como os Estados Unidos da América, por exemplo. Por aqui, parece que continuamos seguindo a ótica do "se é bom para os EUA, é bom para o Brasil", pois projetos de leis vêm tramitando no Congresso Brasileiro para enquadrar a internet (Cf. Caros Amigos, n 184, julho de 2012). Afinal conhecimento no sistema capitalista é mercadoria. Quem quiser ter acesso que pague. E é por essa via que o capitalismo vem se reinventando, no campo do conhecimento, da cultura e das mazelas sociais.
O capitalismo está se reinventando no campo do conhecimento porque vivemos sob uma crise de superprodução e para vender um produto é preciso fazê-lo sempre, já os saberes, não. Uma ideia depois de criada, pode ser vendida indefinidamente. É nessa ótica que a economia criativa entra, sob o manto de que qualquer um pode ser um empreendedor e ganhar dinheiro com suas ideias. É essa a principal pauta do Ministério da Cultura, que já tem modelo na sociedade, como "movimentos que pensam dentro do eixo". No campo das mazelas e na transmissão de responsabilidades ou na dita filantropia capitalista, as somas "investidas" (melhor seria dizer ganhas) em grandes ONGs internacionais são astronômicas. Michael Edwards, diretor de governança da Fundação Ford, em artigo escrito na Revista Fórum de agosto de 2008, afirma que só nos EUA a soma para os próximos 40 anos giram em torno de US$ 55 trilhões. Tudo isso para atacar os sintomas e não as causas. Por fim, o dito acesso às universidades tem criado uma dívida para os estudantes, muita das vezes, impagáveis em muitos países (Cf. Le Monde supracitado).
Dessa forma, conhecimento, cultura e as mazelas sociais, geradas pelo próprio capitalismo, têm servido de fonte de lucro para os privilegiados de sempre. E, por outro lado, o suposto acesso a formação e às migalhas recebidas de instituições duvidosas, pacifica a todos, deixando a população incapaz de responder a altura, posto ser freada na sua fúria. A arte é uma forma de conhecimento e seus fazedores não podem se furtar a discutir todos esses problemas, que são de todos. Quem está preocupado com os "rumos" políticos precisa aprofundar a discussão sobre esses e tantos outros problemas que estão postos para aqueles que visam criar uma arte contra-hegemônica, uma arte que desvele o que parece natural. Para fazê-lo é preciso não temer a discussão e nem o erro.
"Uma andorinha só não faz verão, mas pode acordar o bando todo", disse o poeta Binho, por isso, é preciso disputar a subjetividade do nosso público, tão massacrado com a perversidade da indústria cultural. Nossa arte não pode repetir o que já está posto pelos veículos hegemônicos. Para isso é preciso destrinchar todos esses problemas. Já para potencializar essas ações, devemos escolher os parceiros, que no meu entender, são todos aqueles que lutam por um mundo mais justo. Por fim, é tarefa de um encontro como esse da RBTR, se não resolver, ao menos não fugir a esses desafios.
Adailtom Alves Teixeira
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