Iná Camargo Costa[1]
Quando se pensa de modo subjetivo nas relações entre arte e capitalismo, não se levam em conta aspectos que são fundamentais para materialistas empedernidos. Um deles é o desenvolvimento das forças produtivas e as possibilidades que ele abre para as práticas artísticas. Ainda neste capítulo, já está mais que na hora de começar a pensar em um mundo onde ninguém entre 25 e 50 anos precise trabalhar mais do que doze horas SEMANAIS e todos os que estão aquém ou além dessa faixa etária NÃO PRECISEM TRABALHAR PARA GANHAR A VIDA porque ela já estará assegurada pelos demais. Digamos que a bandeira seria democratizar o ócio que hoje é privilégio de menos de 1% da população mundial.
Pensemos então no que seria um mundo em que praticamente não se precisa trabalhar (doze horas semanais dá pra liquidar em um dia por semana; ou três horas em quatro dias; dois dias de seis e assim por diante!) porque o desenvolvimento das forças produtivas assim o permite. Vamos ter que inventar o que fazer, não é mesmo? Olha aí a função dos artistas em um mundo em que todo mundo pode ser artista! Ajudar os que até agora não tiveram oportunidade de fazer arte a descobrir e desenvolver as suas capacidades criativas. E isso pode ser considerado um trabalho muito valioso. Não vale a pena pensar nisso?
Mas deixemos de lado o sonho (pelo qual vale a pena lutar, bem entendido) e vamos olhar mais de perto e sem subjetividade para o que foi feito da arte e dos artistas no atual estágio do capitalismo.
A Indústria Cultural, tal como a conhecemos, surgiu ao final da Primeira Guerra Mundial, com a transformação dos equipamentos de transmissão e recepção de rádio em meios de produção (os equipamentos de transmissão) e mercadoria (os receptores) para consumo em larga escala. A explicação materialista é simples e verdadeira: até então esses equipamentos eram de uso exclusivo das Forças Armadas e, com o fim da guerra, houve a habitual tragédia do encalhe para a indústria que os produzia (RCA, entre outras). Para transformar prejuízo em lucro, o governo americano e os industriais inventaram, a toque de caixa, um "modelo de negócio" que até hoje funciona também para televisão e internet: o Estado entra com a infraestrutura e o Capital explora o negócio da "comunicação/informação" e do "entretenimento". E como o rádio-meio de produção não correspondia a nenhuma necessidade socialmente estabelecida, desde logo ele se desenvolveu como parasita dos acontecimentos sociais: as emissoras PRIVADAS transmitiam acontecimentos PÚBLICOS das várias esferas, como óperas, concertos, comunicados do poder, jogos e competições esportivas, bem como o noticiário dos jornais do dia. Com o tempo e o desenvolvimento da indústria fonográfica, o rádio acrescentou a essas funções a da divulgação (propaganda) do novo produto – os discos –, até porque ele mesmo se transformara também num poderoso meio de propaganda das demais mercadorias.
Em paralelo a este processo, o cinema foi devidamente açambarcado pelo capital financeiro, que passou a pautar seus métodos de produção e arregimentação de trabalhadores – além dos técnicos, os artistas de teatro. O capítulo seguinte é a televisão, geralmente considerada como uma espécie de síntese entre rádio e cinema, o que não deixa de ser verdade, uma vez que ela parasita acontecimentos sociais como o rádio, produz o equivalente aos filmes em seus programas próprios e é antes de mais nada um veículo de publicidade (hoje é impossível distinguir, numa edição de jornal televisivo, a notícia da propaganda).
Assim é que desde o início dos anos 20 do século passado a indústria cultural se apropriou em caráter abertamente parasitário de todas as modalidades de arte até agora produzidas pela humanidade e, naturalmente, ao arregimentar todos os artistas, definiu a sua função: eles são veículos de propaganda dos valores do capitalismo: novidade, moda, concorrência, inveja, ostentação/encenação de status ou sucesso (sempre de vendas), sentimentalismo barato, infantilismo, mau gosto, autoritarismo. Tanto faz se o trabalho é peça de publicidade ou "obra" (música, vídeo etc.): sua função é sempre reiterar os valores necessários ao funcionamento do capitalismo e estimular o crescimento das vendas.
Mas, como já explicou um profundo analista do funcionamento do capital, seu movimento é contraditório o tempo todo. Um dos resultados mais constantes das suas contradições é a produção de população supérflua, ou candidatos a trabalhador (com a devida formação técnica) que não conseguem se integrar à força de trabalho. Este é o caso dos artistas que, após anos e anos de estudos, descobrem que não há mercado para as suas especialidades. Mas não se trata de caso especial: em todos os setores da economia a produção de população supérflua acontece com regularidade matemática desde a chamada "revolução industrial". A "revolução digital" deu mais um passo neste sentido e, combinada com o fim do chamado "socialismo real", criou a situação político-ideológica que permitiu ao capital eliminar a maior parte dos direitos duramente conquistados pelos trabalhadores ao longo do século XX. Assim como a produção de trabalhadores supérfluos, a chamada "precarização do trabalho" é expressão da força da classe dominante no estágio atual da luta de classes. Agora a palavra de ordem do capital é o empreendedorismo. Tradução: não se faz mais contrato de trabalho; quem quiser trabalhar tem que virar pessoa jurídica e, se quiser ter acesso a antigos direitos como saúde, educação e aposentadoria, que trate de comprar planos de saúde, pagar pelo ensino dos filhos e aderir aos programas de especulação bancária chamados de "renda complementar", pois os direitos foram degradados à condição de serviços e, como tais, passaram a ser explorados como mercadorias às quais só tem acesso quem tem poder aquisitivo. Precarização do trabalho é isto: trabalhador despojado de quaisquer direitos.
A saída encontrada pela categoria dos trabalhadores das artes cênicas foi a formação de grupos, a opção por se apresentar em ruas e praças das cidades ou em espaços abandonados e, mais recentemente, lutar por políticas públicas para a cultura, isto é, bater às portas do Estado para assegurar ao menos a sua sobrevivência física com dinheiro proveniente do fundo público. Mas já está claro que o capital também explora, entre outros, o ramo das artes cênicas através das leis de renúncia fiscal e não vai largar esse osso com facilidade. Até o momento, a concorrência está ganhando de goleada...
Mas se os trabalhadores precários das artes cênicas quiserem ampliar seus horizontes, um próximo passo seria passar à denúncia do estado de coisas que vale para o conjunto dos trabalhadores já nos próprios trabalhos que desenvolvem. Em seguida, começar a reivindicar o acesso aos meios de distribuição realmente relevantes da produção artística e cultural, como a televisão e os espaços bem equipados. Até porque o discurso artístico contra ideológico precisa ter a ambição de alcançar no mínimo uma audiência do tamanho da televisão aberta; por menos que isso, ele não tem sentido. E sem a perspectiva de conquistar o direito de todos serem artistas, esta briga nem vale a pena.
[1] Professora Aposentada da USP.
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