Por Jussara
Trindade[1]
São
14:00h e falta 1 hora para o início desta apresentação da Ópera do Trabalho, numa tarde de domingo ensolarado no Parque
Ecológico do Tietê. São muitos atores, pois o núcleo artístico do Buraco d`Oráculo
inseriu, no espetáculo, alunos de suas oficinas teatrais. Estes se preparam na
barraca-camarim armada atrás do painel que delimita ao fundo a área circular da
representação. Jovens atrizes começam a aquecer o corpo no espaço cênico,
fazendo alongamentos. Os figurinos, masculinos e sóbrios, mesclam cores
terrosas; são marrons, verdes e cinzas sobre os quais foram impressos grandes
códigos de barra, fazendo dos próprios atores e atrizes, mercadorias vivas...
A
atriz Selma Pavanelli se prepara ao acordeom, dedilhando escalas. O público
começa a se aproximar; são muitas famílias com crianças que sentam no gramado,
agradável pela sombra das árvores e a brisa suave. Soa música ambiente, instrumental.
São distribuídos programas com a forma e a cor da Carteira de Trabalho oficial,
onde podemos ler a apresentação da proposta do grupo, as letras das canções, e
nos divertirmos com as fotografias reais dos próprios atores e atrizes, retiradas
de suas carteiras de trabalho. Parte dos atores se mistura ao público, que
formou um semicírculo ao redor do espaço cênico frontalizado. Cessa a música, é
hora de trabalhar! O elenco performa gestualmente os movimentos de distintas
profissões. Primeiro, em total silêncio. A seguir, sons vocais são acrescidos a
essa imagem silenciosa. Quando Adailtom Alves e Selma Pavanelli abraçam seus
instrumentos na área destinada aos atores-músicos, ouvem-se palavras soltas no
espaço, emitidas lentamente pelos outros atores:
Manobra...
Massa...
Massacre...
A
guitarra cria uma base sonora num sloop
rítmico para a performance que se inicia no centro
da roda. Gestos maquinais, linhas retas e mecânicas cortam o espaço cênico. Os
atores criam homens-máquinas, robotizados, que paralisam num dado momento. Tem
início o tema de Abertura da Ópera do
Trabalho. Ao trompete pocket, o ator Edson Paulo dá
apoio à tonalidade da peça musical com longas notas ocasionais, enquanto todos
entoam a Canção do Ofício Oficioso (verdadeira
pérola musical criada pelo ator Toni Edson, durante uma visita à sede do grupo)
que recria com maestria a função primordial dessa parte essencial do gênero
operístico: projetar no ambiente o “clima” emocional propício, levando o
espectador-ouvinte a mergulhar na esfera do “drama” que está prestes a começar.
Por isso, no universo musical a Abertura tem um tempo especial, carregado de
solenidade, uma melodia marcante, um certo suspense...
Ao
término dessa Abertura, estilizada pela alternância do refrão sinfônico com um
baião rasgado, executado em andamento presto
(em minha opinião, acelerado demais para um entendimento satisfatório da
belíssima letra) inicia o Ato I - narração irônica do que poderíamos chamar de
“a saga de Mazé e João” – em que são apresentadas belas imagens cênicas de momentos do cotidiano de um casal
de trabalhadores em sua labuta diária: a falta de gêneros básicos dentro de
casa, a batalha exaustiva para conseguir um lugar no trem/metrô/ônibus, e o
próprio local de trabalho, no caso uma fábrica emblemática, quase tão
caricatural quanto aquela que inspirou Charles Chaplin em Tempos Modernos. Porém, a atualidade da fábrica fica, aqui, por
conta de dois quadros fundamentais: o da ginástica
laboral oferecida aos funcionários, e o da “saudável” brincadeira de
competição entre as seções, elementos esses que denunciam a falácia das
chamadas “dinâmicas de grupo” criadas com base em minuciosos estudos das
relações humanas dentro do ambiente altamente competitivo das grandes empresas,
as quais se disseminaram por todo o globo a partir dos anos 80.
O
primeiro quadro, apresentado sobre um excelente fundo musical instrumental
executado por atores-músicos do próprio grupo, é narrada e comentada por
“jornalistas” que descrevem – sempre com muita ironia – cada momento desse
cotidiano repetitivo e mecânico, desvelando ao público uma situação de vida em
que o trabalho, muito longe de poder
ser considerado “sagrado” tal como tendemos a idealizar por força de nossa
carga cultural judaico-cristã, é descrito como um jogo desigual e injusto, pelo
menos para essa parte menos favorecida da população. No segundo, o logro da
máxima o-trabalho-dignifica-o-homem é
desvelado a partir de um ágil jogo corporal entre os atores, que cantam um funk no melhor estilo pancadão malicioso, enquanto jogam entre
si as caixas de “mercadorias” produzidas na fábrica. Cabe, aqui, um destaque
para a musicalidade exuberante dos atores e atrizes, que alternam a voz
masculina do “patrão” com o coro feminino de “funcionárias”, para a delícia do
público que se diverte com o duplo sentido característico desse gênero. A
primeira parte do espetáculo finaliza, assim, com o toque de crueldade sutil
que evidencia o estilo brechtiano do Buraco d’Oráculo ao manter-se fiel à
reflexão crítica sem, porém, abandonar o bom humor.
No
momento seguinte o espetáculo contrapõe, à comicidade do início, a delicadeza
de imagens cênicas que apresentam o trabalho como uma verdadeira pena, imposta
a mulheres e crianças em sua condição de fragilidade. O recurso da narração autobiográfica, na 1ª pessoa,
faz da cena das lavadeiras, que cantam enredadas em seus varais – aqui,
transformados em amarras que sujeitam e oprimem seus corpos – um momento de
grande dor e emoção, espelhados no olhar do público. O sentimento se aprofunda
na cena seguinte, em que o ator Edson Paulo recita Meninos carvoeiros, poema de Manuel Bandeira, e são narrados dados
reais sobre o trabalho infantil no país. A introdução do real no universo
ficcional evidencia, mais uma vez, a vertente épico-dialética na qual o
coletivo paulistano apoia a sua criação artística. O clima doloroso é, contudo,
rompido pela súbita entrada em cena de uma figura com cabeça de televisão. Empunhando
uma vara de pescar, esta vai “fisgando” os atores, que correm atrás da isca num
frenesi de consumo desenfreado. Após a “destruição” desse deus-logomarca pelos personagens enlouquecidos, o espetáculo dá
lugar novamente ao humor, utilizando desta vez algumas das mais tradicionais técnicas de palhaço, sobretudo
a de “pancadaria” que, enriquecida pelo recurso à sonoplastia, provoca o riso
sincero dos adultos e a gargalhada das crianças.
Na
sequência do último Ato, os atores reorganizam o espaço cênico sob um
interessante fundo musical de suspense, até que, num suporte, é colocado o
anúncio de “VAGAS”... para a Ópera! Um verdadeiro presente para a categoria
artística que, embora quase ninguém se lembre, também é de trabalhadores. Os atores, que agora têm saias frufru cor-de-rosa e outros adereços de ballet clássico colocadas sobre os
rústicos figurinos de trabalhadores, são a imagem cômica do artista que, como
diz o refrão da canção, têm que se
encaixar aos modelos impostos pelas instituições que “ditam as regras” do
mercado cultural.
Após
outros quadros que apresentam de modo crítico e bem-humorado o surgimento de
algumas profissões, como a de operador de telemarketing,
ao lado de outras já extintas, descritas na letra do Samba da preservação, o espetáculo adquire um tom mais sério e
didático, citando o “camarada” Marx e outros importantes personagens de um
ideário social-humanista como Che (Guevara) e Marighela. Na cena final, o ator
e também diretor do espetáculo Adailtom Alves pega a guitarra e solta a voz num
rap-rock-pauliceia-pauleira, num
explícito convite à destruição das velhas estruturas sociais. O grupo de atores
atende ao apelo derrubando com o próprio corpo a pirâmide que fora erguida bem
no centro da roda durante a cena anterior, espalhando pela plateia as caixas
usadas para erguê-la. Ao término dessa ação catártica, agora embalados pela
suavidade da canção final entoada a
capella, os atores e atrizes convidam o público a participar da
reconstrução do mundo, entregando aos espectadores as caixas espalhadas –
escombros de um mundo desgastado que temos, em algum lugar de nossos sonhos, a
fantasia de transformar.
O
espetáculo termina, então, sem apresentar uma proposta sobre essa “nova”
sociedade que se pretende criar, apontando apenas que se trata de um movimento
ainda em gestação, coletivo, o qual depende da participação de muitos e,
principalmente, que não será vivido sem que as estruturas antigas caiam por
terra. “Não há mais lugar para reformas,
apenas para revoluções”, parece
afirmar a Ópera do Trabalho, que estreou em São Paulo poucas semanas depois da
eclosão das manifestações de rua que se disseminaram como “fogo na palha” por
todo o país nos meses de junho e julho. Acaso ou não, esta coincidência significativa – uma notável manifestação de
sincronicidade junguiana – parece se ajustar perfeitamente à vocação oracular
desse grupo de teatro de rua, que há quinze anos vem trazendo aos mais diversos
públicos a oportunidade de pensar sobre os caminhos a serem trilhados, em busca
de um mundo mais justo para todos e todas.
Ao
término deste “comentário teatral”, gostaria ainda de fazer duas considerações,
uma de natureza estética e outra, política. A primeira diz respeito à corajosa
inserção da noção musical de ópera
num espetáculo de rua, decisão essa que traz consigo um desafio notável uma vez
que, nas origens deste
gênero da música europeia,
os atores-cantores tinham a seu favor um ambiente cênico que amplificava suas
vozes pela simples configuração arquitetônica desses espaços luxuosos,
construídos para o deleite da nobreza, e cujos temas abordavam apenas lendas e
personagens mitológicos, com total primazia do ficcional, da fantasia e da
alegoria que caracterizou o período barroco no século XVII. É digno de nota que
a ópera do Buraco d’Oráculo tenha sido elaborada na contramão dessa concepção
original, em quase todos os aspectos:
tipo de espaço cênico (ruas, espaços abertos), de público (cidadãos,
trabalhadores), de cenários e figurinos (enxutos, minimalistas), de temática
(luta de classes, operariado). O que poderia ser reconhecido nele, então, como
uma ópera? Arrisco dizer que não é
apenas o fato de ter várias canções entoadas pelos atores durante a função,
individualmente ou em coro, o que assegura a coerência do título do espetáculo,
mas o modo como a sua musicalidade é articulada à encenação propriamente dita,
fazendo da música – como diz o programa – “a tônica da dramaturgia”. Aqui, dois elementos musicais
essenciais do canto operístico – o recitativo
e a ária – constroem, com seus
respectivos desenhos sonoros, a significação dos fatos apresentados
cenicamente. Com o primeiro, dá-se o relato da história (as narrações, os
comentários, os dados reais, as leituras) acompanhado de uma base musical que
acentua e valoriza alguma palavra ou trecho “recitado”. Já a ária (termo que significa, simplesmente,
“canção”) mostra o pensamento e as emoções dos personagens diante dos
acontecimentos.
A Ópera do Trabalho dá continuidade ao objetivo de investigar as
histórias das pessoas que vivem nas comunidades da periferia de São Paulo,
enfocando agora a questão do trabalho. Nesse processo, surge a musicalidade
como aporte fundamental à pesquisa estética a que o grupo se entrega com muita
determinação e vigor. Vale lembrar que, em busca de alcançar artisticamente
aquele objetivo maior, o coletivo empregou tempo, recursos e muito esforço
pessoal no aprendizado e aprimoramento de suas competências musicais – técnica
vocal e instrumental, canto coletivo, leitura e escrita musical, dentre outras.
É a consciência de que a teatralidade do teatro de rua depende, em grande
medida, de sua musicalidade.
A
segunda consideração, de ordem política, tem a ver com os protestos realizados
no país nas últimas semanas. Nunca se ouviu tanto falar em “rua”! Ou na “voz
das ruas”. Trata-se de um fenômeno inédito, com desenho próprio, pertencente a
este tempo. Tão recente que ainda não tivemos tempo (e distanciamento)
suficiente para compreendê-lo. Creio, porém, que as manifestações de rua que
tomaram o país no mês de junho tornaram repentinamente “ultrapassado” o chamado
para “quebrar as estruturas”, uma vez que as mesmas estão sendo literalmente quebradas. Sem figuras de
retórica!
Essas
manifestações têm revelado que a demolição das estruturas já estabelecidas pode
ser bem menos poética que a apresentada pelo Buraco d’Oráculo no final da Ópera do Trabalho. O que pode o teatro
de rua fazer, diante da crueza de uma situação que não só entra em nossos lares
pela televisão, mas põe em perigo real a integridade física de quem estiver
apenas passando por perto de uma passeata, ou talvez participando de uma delas,
na legítima defesa de seus direitos de cidadania? Como fazer com que o teatro
de rua não pareça estar “perdendo o bonde” diante dessa realidade tão atual?
Como não ficarmos com um certo ar retrô
diante dos últimos acontecimentos e, ao mesmo tempo, não abrirmos mão da poesia
e da delicadeza, elementos tão preciosos à arte do teatro? Esse, em minha
opinião, é provavelmente o maior desafio que o teatro de rua – em sua vocação
de Arte Pública – tem pela frente.
Publicado
originalmente em A Gargalhada nº 27.
[1]
Mestre e doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro-UNIRIO; educadora musical e musicoterapeuta especializada em
Psicomotricidade e Pedagogia do Movimento; co-autora do livro Teatro de Rua no
Brasil: a primeira década do terceiro milênio (2010).
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