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quarta-feira, 25 de junho de 2014

APONTAMENTOS SOBRE A ÓPERA DO TRABALHO


Por Jussara Trindade[1]

São 14:00h e falta 1 hora para o início desta apresentação da Ópera do Trabalho, numa tarde de domingo ensolarado no Parque Ecológico do Tietê. São muitos atores, pois o núcleo artístico do Buraco d`Oráculo inseriu, no espetáculo, alunos de suas oficinas teatrais. Estes se preparam na barraca-camarim armada atrás do painel que delimita ao fundo a área circular da representação. Jovens atrizes começam a aquecer o corpo no espaço cênico, fazendo alongamentos. Os figurinos, masculinos e sóbrios, mesclam cores terrosas; são marrons, verdes e cinzas sobre os quais foram impressos grandes códigos de barra, fazendo dos próprios atores e atrizes, mercadorias vivas...
A atriz Selma Pavanelli se prepara ao acordeom, dedilhando escalas. O público começa a se aproximar; são muitas famílias com crianças que sentam no gramado, agradável pela sombra das árvores e a brisa suave. Soa música ambiente, instrumental. São distribuídos programas com a forma e a cor da Carteira de Trabalho oficial, onde podemos ler a apresentação da proposta do grupo, as letras das canções, e nos divertirmos com as fotografias reais dos próprios atores e atrizes, retiradas de suas carteiras de trabalho. Parte dos atores se mistura ao público, que formou um semicírculo ao redor do espaço cênico frontalizado. Cessa a música, é hora de trabalhar! O elenco performa gestualmente os movimentos de distintas profissões. Primeiro, em total silêncio. A seguir, sons vocais são acrescidos a essa imagem silenciosa. Quando Adailtom Alves e Selma Pavanelli abraçam seus instrumentos na área destinada aos atores-músicos, ouvem-se palavras soltas no espaço, emitidas lentamente pelos outros atores:
Manobra...
Massa...
Massacre...

A guitarra cria uma base sonora num sloop rítmico para a performance que se inicia no centro da roda. Gestos maquinais, linhas retas e mecânicas cortam o espaço cênico. Os atores criam homens-máquinas, robotizados, que paralisam num dado momento. Tem início o tema de Abertura da Ópera do Trabalho. Ao trompete pocket, o ator Edson Paulo dá apoio à tonalidade da peça musical com longas notas ocasionais, enquanto todos entoam a Canção do Ofício Oficioso (verdadeira pérola musical criada pelo ator Toni Edson, durante uma visita à sede do grupo) que recria com maestria a função primordial dessa parte essencial do gênero operístico: projetar no ambiente o “clima” emocional propício, levando o espectador-ouvinte a mergulhar na esfera do “drama” que está prestes a começar. Por isso, no universo musical a Abertura tem um tempo especial, carregado de solenidade, uma melodia marcante, um certo suspense...
Ao término dessa Abertura, estilizada pela alternância do refrão sinfônico com um baião rasgado, executado em andamento presto (em minha opinião, acelerado demais para um entendimento satisfatório da belíssima letra) inicia o Ato I - narração irônica do que poderíamos chamar de “a saga de Mazé e João” – em que são apresentadas belas imagens cênicas de momentos do cotidiano de um casal de trabalhadores em sua labuta diária: a falta de gêneros básicos dentro de casa, a batalha exaustiva para conseguir um lugar no trem/metrô/ônibus, e o próprio local de trabalho, no caso uma fábrica emblemática, quase tão caricatural quanto aquela que inspirou Charles Chaplin em Tempos Modernos. Porém, a atualidade da fábrica fica, aqui, por conta de dois quadros fundamentais: o da ginástica laboral oferecida aos funcionários, e o da “saudável” brincadeira de competição entre as seções, elementos esses que denunciam a falácia das chamadas “dinâmicas de grupo” criadas com base em minuciosos estudos das relações humanas dentro do ambiente altamente competitivo das grandes empresas, as quais se disseminaram por todo o globo a partir dos anos 80.
O primeiro quadro, apresentado sobre um excelente fundo musical instrumental executado por atores-músicos do próprio grupo, é narrada e comentada por “jornalistas” que descrevem – sempre com muita ironia – cada momento desse cotidiano repetitivo e mecânico, desvelando ao público uma situação de vida em que o trabalho, muito longe de poder ser considerado “sagrado” tal como tendemos a idealizar por força de nossa carga cultural judaico-cristã, é descrito como um jogo desigual e injusto, pelo menos para essa parte menos favorecida da população. No segundo, o logro da máxima o-trabalho-dignifica-o-homem é desvelado a partir de um ágil jogo corporal entre os atores, que cantam um funk no melhor estilo pancadão malicioso, enquanto jogam entre si as caixas de “mercadorias” produzidas na fábrica. Cabe, aqui, um destaque para a musicalidade exuberante dos atores e atrizes, que alternam a voz masculina do “patrão” com o coro feminino de “funcionárias”, para a delícia do público que se diverte com o duplo sentido característico desse gênero. A primeira parte do espetáculo finaliza, assim, com o toque de crueldade sutil que evidencia o estilo brechtiano do Buraco d’Oráculo ao manter-se fiel à reflexão crítica sem, porém, abandonar o bom humor.
            No momento seguinte o espetáculo contrapõe, à comicidade do início, a delicadeza de imagens cênicas que apresentam o trabalho como uma verdadeira pena, imposta a mulheres e crianças em sua condição de fragilidade. O recurso da narração autobiográfica, na 1ª pessoa, faz da cena das lavadeiras, que cantam enredadas em seus varais – aqui, transformados em amarras que sujeitam e oprimem seus corpos – um momento de grande dor e emoção, espelhados no olhar do público. O sentimento se aprofunda na cena seguinte, em que o ator Edson Paulo recita Meninos carvoeiros, poema de Manuel Bandeira, e são narrados dados reais sobre o trabalho infantil no país. A introdução do real no universo ficcional evidencia, mais uma vez, a vertente épico-dialética na qual o coletivo paulistano apoia a sua criação artística. O clima doloroso é, contudo, rompido pela súbita entrada em cena de uma figura com cabeça de televisão. Empunhando uma vara de pescar, esta vai “fisgando” os atores, que correm atrás da isca num frenesi de consumo desenfreado. Após a “destruição” desse deus-logomarca pelos personagens enlouquecidos, o espetáculo dá lugar novamente ao humor, utilizando desta vez algumas das mais tradicionais técnicas de palhaço, sobretudo a de “pancadaria” que, enriquecida pelo recurso à sonoplastia, provoca o riso sincero dos adultos e a gargalhada das crianças.
Na sequência do último Ato, os atores reorganizam o espaço cênico sob um interessante fundo musical de suspense, até que, num suporte, é colocado o anúncio de “VAGAS”... para a Ópera! Um verdadeiro presente para a categoria artística que, embora quase ninguém se lembre, também é de trabalhadores. Os atores, que agora têm saias frufru cor-de-rosa e outros adereços de ballet clássico colocadas sobre os rústicos figurinos de trabalhadores, são a imagem cômica do artista que, como diz o refrão da canção, têm que se encaixar aos modelos impostos pelas instituições que “ditam as regras” do mercado cultural.
Após outros quadros que apresentam de modo crítico e bem-humorado o surgimento de algumas profissões, como a de operador de telemarketing, ao lado de outras já extintas, descritas na letra do Samba da preservação, o espetáculo adquire um tom mais sério e didático, citando o “camarada” Marx e outros importantes personagens de um ideário social-humanista como Che (Guevara) e Marighela. Na cena final, o ator e também diretor do espetáculo Adailtom Alves pega a guitarra e solta a voz num rap-rock-pauliceia-pauleira, num explícito convite à destruição das velhas estruturas sociais. O grupo de atores atende ao apelo derrubando com o próprio corpo a pirâmide que fora erguida bem no centro da roda durante a cena anterior, espalhando pela plateia as caixas usadas para erguê-la. Ao término dessa ação catártica, agora embalados pela suavidade da canção final entoada a capella, os atores e atrizes convidam o público a participar da reconstrução do mundo, entregando aos espectadores as caixas espalhadas – escombros de um mundo desgastado que temos, em algum lugar de nossos sonhos, a fantasia de transformar.
O espetáculo termina, então, sem apresentar uma proposta sobre essa “nova” sociedade que se pretende criar, apontando apenas que se trata de um movimento ainda em gestação, coletivo, o qual depende da participação de muitos e, principalmente, que não será vivido sem que as estruturas antigas caiam por terra. “Não há mais lugar para reformas, apenas para revoluções”, parece afirmar a Ópera do Trabalho, que estreou em São Paulo poucas semanas depois da eclosão das manifestações de rua que se disseminaram como “fogo na palha” por todo o país nos meses de junho e julho. Acaso ou não, esta coincidência significativa – uma notável manifestação de sincronicidade junguiana – parece se ajustar perfeitamente à vocação oracular desse grupo de teatro de rua, que há quinze anos vem trazendo aos mais diversos públicos a oportunidade de pensar sobre os caminhos a serem trilhados, em busca de um mundo mais justo para todos e todas.
Ao término deste “comentário teatral”, gostaria ainda de fazer duas considerações, uma de natureza estética e outra, política. A primeira diz respeito à corajosa inserção da noção musical de ópera num espetáculo de rua, decisão essa que traz consigo um desafio notável uma vez que, nas origens deste gênero da música europeia, os atores-cantores tinham a seu favor um ambiente cênico que amplificava suas vozes pela simples configuração arquitetônica desses espaços luxuosos, construídos para o deleite da nobreza, e cujos temas abordavam apenas lendas e personagens mitológicos, com total primazia do ficcional, da fantasia e da alegoria que caracterizou o período barroco no século XVII. É digno de nota que a ópera do Buraco d’Oráculo tenha sido elaborada na contramão dessa concepção original, em quase todos os aspectos: tipo de espaço cênico (ruas, espaços abertos), de público (cidadãos, trabalhadores), de cenários e figurinos (enxutos, minimalistas), de temática (luta de classes, operariado). O que poderia ser reconhecido nele, então, como uma ópera? Arrisco dizer que não é apenas o fato de ter várias canções entoadas pelos atores durante a função, individualmente ou em coro, o que assegura a coerência do título do espetáculo, mas o modo como a sua musicalidade é articulada à encenação propriamente dita, fazendo da música – como diz o programa – “a tônica da dramaturgia”. Aqui, dois elementos musicais essenciais do canto operístico – o recitativo e a ária – constroem, com seus respectivos desenhos sonoros, a significação dos fatos apresentados cenicamente. Com o primeiro, dá-se o relato da história (as narrações, os comentários, os dados reais, as leituras) acompanhado de uma base musical que acentua e valoriza alguma palavra ou trecho “recitado”. Já a ária (termo que significa, simplesmente, “canção”) mostra o pensamento e as emoções dos personagens diante dos acontecimentos.
A Ópera do Trabalho dá continuidade ao objetivo de investigar as histórias das pessoas que vivem nas comunidades da periferia de São Paulo, enfocando agora a questão do trabalho. Nesse processo, surge a musicalidade como aporte fundamental à pesquisa estética a que o grupo se entrega com muita determinação e vigor. Vale lembrar que, em busca de alcançar artisticamente aquele objetivo maior, o coletivo empregou tempo, recursos e muito esforço pessoal no aprendizado e aprimoramento de suas competências musicais – técnica vocal e instrumental, canto coletivo, leitura e escrita musical, dentre outras. É a consciência de que a teatralidade do teatro de rua depende, em grande medida, de sua musicalidade.
A segunda consideração, de ordem política, tem a ver com os protestos realizados no país nas últimas semanas. Nunca se ouviu tanto falar em “rua”! Ou na “voz das ruas”. Trata-se de um fenômeno inédito, com desenho próprio, pertencente a este tempo. Tão recente que ainda não tivemos tempo (e distanciamento) suficiente para compreendê-lo. Creio, porém, que as manifestações de rua que tomaram o país no mês de junho tornaram repentinamente “ultrapassado” o chamado para “quebrar as estruturas”, uma vez que as mesmas estão sendo literalmente quebradas. Sem figuras de retórica!
Essas manifestações têm revelado que a demolição das estruturas já estabelecidas pode ser bem menos poética que a apresentada pelo Buraco d’Oráculo no final da Ópera do Trabalho. O que pode o teatro de rua fazer, diante da crueza de uma situação que não só entra em nossos lares pela televisão, mas põe em perigo real a integridade física de quem estiver apenas passando por perto de uma passeata, ou talvez participando de uma delas, na legítima defesa de seus direitos de cidadania? Como fazer com que o teatro de rua não pareça estar “perdendo o bonde” diante dessa realidade tão atual? Como não ficarmos com um certo ar retrô diante dos últimos acontecimentos e, ao mesmo tempo, não abrirmos mão da poesia e da delicadeza, elementos tão preciosos à arte do teatro? Esse, em minha opinião, é provavelmente o maior desafio que o teatro de rua – em sua vocação de Arte Pública – tem pela frente.

São Paulo, 04 de agosto de 2013.


Publicado originalmente em A Gargalhada nº 27.




[1] Mestre e doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO; educadora musical e musicoterapeuta especializada em Psicomotricidade e Pedagogia do Movimento; co-autora do livro Teatro de Rua no Brasil: a primeira década do terceiro milênio (2010).

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