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quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Diálogo mudo: o ciclo das conferências


Diálogo mudo: o ciclo das conferências

Adailtom Alves Teixeira[1]


Todos sabem que o botão fechar a porta na maioria dos elevadores é absolutamente inútil, colocado ali apenas para que o usuário tenha a sensação de que de alguma maneira pode interferir na velocidade do elevador. Na verdade, quando se aperta aquele botão, a porta se fecha exatamente na mesma velocidade em que o faria se apertássemos o botão do térreo. Esse caso extremo de participação forjada é uma metáfora apropriada para o papel acordado entre cidadãos, no nosso processo político pós-moderno.

Slavoj Zizek


Foi dada a largada para um novo ciclo de conferências na área da cultura, sendo que as municipais devem ocorrer até 11 de agosto, as regionais até 15 de setembro, as estaduais até 29 de setembro e a III Conferência Nacional ocorrerá em Brasília de 26 a 29 de novembro de 2013. As informações poderão ser obtidas no site www.cultura.gov.br/3cnc.

As conferências fazem parte do Sistema Nacional de Cultura, sendo um canal de comunicação da sociedade civil com o poder público. Mas até que ponto as demandas, as propostas tiradas nas conferências são, de fato, encaminhadas pelos governantes? Até que ponto não se torna apenas um falso diálogo, como o aludido pela epígrafe? Ou até que ponto não é apenas o aspecto econômico que tem prevalecido no encaminhamento das propostas por parte do poder público?

Se tomarmos a I Conferência Municipal de Cultura na cidade de São Paulo, em 2004, das mais de 600 propostas, o que realmente foi posto em prática? É possível ser categórico. Nada. Quanto a I Conferência Nacional, todo o empenho por parte da sociedade civil ao debater e criar propostas no sentido de tornar a cultura um fator importante no desenvolvimento humano e da cidadania, vem sendo encaminhado apenas pelo viés econômico. Dinheiro aqui é importante. Mas é preciso esclarecer que, enquanto os delegados pleiteavam investimento direto do Estado, este, tem relegado ao mercado o encaminhamento das políticas públicas de cultura. Os números e as práticas são claros quanto a esse aspecto.

Fontes do próprio Ministério da Cultura (Minc) dão conta de que o orçamento para 2013 é de quase 3 bilhões, sendo que 2 bilhões são destinados às leis de renúncia fiscal, isto é, o Estado abre mão de seu direito e delega aos departamentos de marketing das empresas para que eles digam o que é ou não cultura, o que é ou não digno de ser “patrocinado”. E quem são os principais patrocinadores? Os três maiores, por ordem, são Petrobrás, Vale e Banco do Brasil, que em 2012 “investiram” respectivamente 80 milhões, 40 milhões e 39 milhões de reais. Logo, se tomarmos apenas esses dados é possível perceber que o dinheiro é público duas vezes. Afinal, entre os principais patrocinadores temos uma empresa e um banco estatal. É importante destacar que os governos Lula/Dilma dobraram o orçamento da renúncia fiscal, portanto, ampliaram o latifúndio cultural. Em 2012, na Lei Rouanet, foram captados 1,23 bilhões.

E quem fica com esse dinheiro? De acordo com matéria da revista Caros Amigos de outubro de 2012, quase 70% dos recursos ficam em São Paulo e Rio de Janeiro. Dezessete estados ficaram com 1% e Acre, Roraima e Tocantins tiveram índice zero. Só que os recursos são ainda mais concentrados, apesar de serem dois estados ricos da federação, os recursos ficam concentrados apenas em alguns bairros da capital dessas unidades federativas.

Se tomarmos uma área como a do teatro, perceberemos um pouco essa distorção. Na cidade de São Paulo está em cartaz um musical que teve um custo de produção no valor de 50 milhões de reais e que se utilizou da Lei Rouanet, da renúncia fiscal. O ingresso mais barato custa R$ 280,00 reais, logo não é qualquer trabalhador que poderá ter acesso a essa produção financiada com recursos públicos, já que o patrocinador deixou de pagar impostos para “financiar” essa produção. Por outro lado, a Funarte (Fundação Nacional de Artes), autarquia do Minc, lançou nesse ano o edital Myrian Muniz, destinado à circulação, produção e manutenção das atividades teatrais. Serão 108 propostas contempladas em todo o território nacional, com recursos da ordem de 10 milhões. Sobre a distorção, os dados falam por si só.

Outros aspectos revelam como o encaminhamento das políticas públicas de cultura tem optado apenas por seu vetor econômico, como a criação de uma Secretaria de Economia Criativa, bem como a reformulação da Lei Rouanet no Procultura, que mantém o princípio da renúncia fiscal, inclusive em 100%, apesar da maior parte dos produtores de arte clamarem pelo seu fim. A aprovação do Vale Cultura é outro aspecto dessa revelação; previsto para iniciar em setembro desse ano, deve injetar na economia 7 bilhões de reais. Apesar de ser um vale destinado ao trabalhador, é importante perguntarmos: em um país em que o gosto cultural é formado pela indústria cultural de massa, quem irá se beneficiar desses recursos?

Outros aspectos poderiam ser levantados, como as metas do Plano Nacional de Cultura, mesmo tendo três dimensões (simbólica, direito de cidadania e potencial de desenvolvimento econômico), o terceiro parece ter um grande destaque, até porque se espera que, em breve, a cultura corresponda a 4,5 do Produto Interno Bruto. Essa é a expectativa do Minc.

Como se vê, apesar do clamor da sociedade civil nas conferências, nos conselhos e outros órgãos de participação, não temos revertido o que parece ser a grande diretriz dos governos, em especial do governo federal: ampliar o latifúndio cultural. Com essa política, fazem mais do mesmo, em que apenas poucos podem produzir e dizer o que é ou não cultura, o que é ou não arte, enquanto a imensa maioria deve receber passivamente.

Uma possibilidade de mudança dessa realidade também vem sendo solicitada há bastante tempo; são duas PECs (Proposta de Emenda Constitucional): a PEC 150/03, que organiza os recursos destinados à cultura, sendo 2% da União, 1,5% dos estados e 1% nos municípios; e outra é a PEC 236/08, que torna a cultura um direito social. Ambas estão paradas no Congresso Nacional.

Os dados aqui levantados demonstram um empenho por parte da sociedade civil em modificar a realidade da cultura no Brasil; para tanto tem participado ativamente dos canais estabelecidos para o diálogo, mas na prática, os rumos da política cultural tem dado preferência ao lobby e não às reais demandas dos brasileiros. Dessa forma, o diálogo fica mudo: fala-se bastante e se tem a impressão de que estamos sendo ouvidos, mas ao executar as propostas ou se distorce o que se ouve ou nada é feito.

Publicado originalmente no Jornal Brasil de Fato, edição 544.


[1] Mestre em Artes; articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua; ator e diretor teatral.

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