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terça-feira, 9 de julho de 2013

Boff e as relações totais

O ser humano como nó de relações totais

 Leonardo Boff* 
Em 1845, Karl Marx escreveu suas famosas 11 teses sobre Feurbach, publicadas somente em 1888 por Engels. Na sexta tese Marx afirma algo verdadeiro mas reducionista: "A essência humana é o conjunto das relações sociais". Efetivamente, não se pode pensar a essência humana fora das relações sociais. Mas ela é muito mais que isso, pois resulta do conjunto de suas relações totais.

Descritivamente, sem querer definir a essência humana, ela emerge como um nó de relações voltadas para todas as direções: para baixo, para cima, para dentro e para fora. É como um rizoma, aquele bulbo com raízes em todas as direções. O ser humano se constrói na medida em que ativa este complexo de relações, não somente as sociais. Em outros termos, o ser humano se caracteriza por surgir como uma abertura ilimitada: para si mesmo, para o mundo, para o outro e para a totalidade. Sente em si uma pulsão infinita, embora encontre somente objetos finitos. Daí a sua permanente implenitude e insatisfação.

Não se trata de um problema psicológico que um psicanalista ou um psiquiatra possa curar. É sua marca distintiva, ontológica, e não um defeito. Mas, aceitando a indicação de Marx, boa parte da construção do humano se realiza, efetivamente, na sociedade. Daí a importância de considerarmos qual seja a formação social que melhor cria as condições para ele poder desabrochar mais plenamente nas mais variadas relações. Sem oferecer as devidas mediações, diria que a melhor formação social é a democracia: comunitária, social, representativa, participativa, debaixo para cima e que inclua a todos sem exceção.

Na formulação de Boaventura de Souza Santos, a democracia deve ser sem fim. Tem a ver com um projeto aberto, sempre em construção que começa nas relações dentro da família, da escola, da comunidade, das associações, dos movimentos, das igrejas e culmina na organização do Estado. Como numa mesa, vejo quatro pernas que sustentam uma democracia mínima e verdadeira, como tanto acentuava em sua vida Herbert de Souza (o Betinho) e que, juntos em conferências e debates, procurávamos difundir entre prefeitos e lideranças populares.

A primeira perna reside na participação: o ser humano, inteligente e livre, não quer ser apenas beneficiário de um processo mas ator e participante. Só assim se faz sujeito e cidadão. Esta participação deve vir de baixo para não excluir ninguém. A segunda perna consiste na igualdade. Vivemos num mundo de desigualdades de toda ordem. Cada um é singular e diferente. Mas a participação crescente em tudo impede que a diferença se transforme em desigualdade e permite a igualdade crescer.

É a igualdade no reconhecimento da dignidade de cada pessoa e no respeito a seus direitos que sustenta a justiça social. Junto com a igualdade vem a equidade: a proporção adequada que cada um recebe por sua colaboração na construção do todo social. A terceira perna é a diferença. Ela é dada pela natureza. Cada ser, especialmente, o ser humano, homem e mulher, é diferente. Esta deve ser acolhida e respeitada como manifestação das potencialidades próprias das pessoas, dos grupos e das culturas.

São as diferenças que nos revelam que podemos ser humanos de muitas formas, todas elas humanas e por isso merecedoras de respeito e de acolhida. A quarta perna se dá na comunhão: o ser humano possui subjetividade, capacidade de comunicação com sua interioridade e com a subjetividade dos outros; é um portador de valores como solidariedade, compaixão, defesa dos mais vulneráveis e de diálogo com a natureza e com a divindade. Aqui aparece a espiritualidade como aquela dimensão da consciência que nos faz sentir parte de um Todo e como aquele conjunto de valores intangíveis que dão sentido à nossa vida pessoal e social e também a todo o universo.

Estas quatro pernas vêm sempre juntas e equilibram a mesa, vale dizer, sustentam uma democracia real. Ela nos educa a sermos coautores da construção do bem comum; em nome dele aprendemos a limitar nossos desejos por amor à satisfação dos desejos coletivos. Esta mesa de quatro pernas não existiria se não estivesse apoiada no chão e na terra. Assim a democracia não seria completa se não incluísse a natureza que tudo possibilita. Ela fornece a base físico-química-ecológica que sustenta a vida e a cada um de nós.

Pelo fato de terem valor em si mesmos, independentemente do uso que fizermos deles, todos os seres são portadores de direitos. Merecem continuar a existir, e a nós cabe respeitá-los e entendê-los como concidadãos. Serão incluídos numa democracia sem fim sócio-cósmica. Esparramado em todas estas dimensões, realiza-se o ser humano na história, num processo ilimitado e sem fim. 

 * Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor. É dele ''O destino do homem e do mundo' (Vozes, 2000). - lboff@leonardoboff.com


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