Daniel Graziane[1]
Uma noiva desce de rapel
pelo prédio no Centro de Porto Velho. Depois um homem. Seria um noivo?
Motoristas querem seguir o fluxo diário. Buzinas. Celulares brotam dos bolsos e
fotos instantaneamente vão parar nas redes sociais. O prédio gigante e o corpo
minúsculo diante da estrutura de concreto. Perigo calculado ou não? Ao menos o
pescoço das pessoas modifica a direção. Olhar para o alto. Olhar para o
edifício desamparado.
Assim começa Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote de La Mancha e Seu
Escudeiro Sancho Pança: um capítulo que poderua ter sido do Grupo
Teatro que Roda, Goiás. O homem de terno pode ser um trader do mercado financeiro que acaba de perder todo seu dinheiro
aplicado nas ações da Petrobrás. Ele caça alguém. Está a procura de algo. Seria
a sua parte? Parte no quê? Se esse homem está bem ou não é difícil saber.
Lembro-me de jovens viciados em crack
que frequentam a região em que estamos. Penso nas pessoas que foram afetadas
por inúmeros escândalos em nosso país.
O texto às vezes se perde,
às vezes se quebra, às vezes alucina. Mas alucinaria o texto mais do que a
cidade? São fragmentos de uma história. Vou preenchendo tudo isso.
A cena navega, as noivas
imprecisas. O homem e seu terno em
frangalhos une-se a um catador de sucata que se diz cansado de promessas. O
catador entre uma vida sem ilusões e uma vida sem esperança parece querer mais
uma vez acreditar em algo. Caso ele siga Dom Quixote poderá ganhar uma ilha. A
cidade ilha aos poucos vai deixando de lado suas fronteiras e a peça que era só
um item na cidade acaba por se misturar e arrisca-se virar uma coisa só.
Improvisos acontecem e de
inicio fazem me pensar que o que vejo não foi combinado. Uma luta na Av. Sete
de Setembro, horário de rush. É aquilo uma briga que aconteceu por acaso ou são
atores? Começo a pensar no Show de Truman
e sua ilha. Começo a refletir sobre a realidade e sobre a narrativa criada
pelos gigantes da mídia. O que é real e o que não é? Ao redor já não sei o que
é personagem e o que não é. Será que eu sou uma personagem? Será que sou um
fruídor de teatro naquela rua? Será que estou criando uma narrativa ou
participando da história?
Um trator. Um carro de
policia. Mototaxistas da cidade. Poderíamos pensar que esses são elementos de
um espetáculo de gigantes. Poderíamos pensar que tudo isso é róliúdiano demais.
Poderíamos pensar que o final onde João Quixote é preso foi tú mãtchi. Mas
penso que entre gigantes aparelhos e pequenas emoções esse espetáculo assalta o
aparelhamento do espetacular e faz com que o humano que as vezes se sente
pequeno se sinta grande. Se sinta parte. Se sinta menos ilha e mais cavaleiro.
Se sente mais cidadão dessa cidade e mais perto de um lugar que parece tão
longe das janelas dos carros. Ao fim do
espetáculo João Quixote sai preso e nós ficamos livres por policiais numa
operação espetacular. E toda a força do espetáculo deixa ainda uma inquietação:
Sancho Pança o catador de sucata fica sem ver sua promessa cumprida mais uma
vez.
Essa foi sua parte, qual foi
a nossa? Mudamos não somente a direção do pescoço, mas creio que podemos ter
mudado uma forma de ver a cidade e de ver as relações que nela existem.
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