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terça-feira, 18 de agosto de 2015

Gigantes, pequenos e a direção do pescoço


Daniel Graziane[1]

Uma noiva desce de rapel pelo prédio no Centro de Porto Velho. Depois um homem. Seria um noivo? Motoristas querem seguir o fluxo diário. Buzinas. Celulares brotam dos bolsos e fotos instantaneamente vão parar nas redes sociais. O prédio gigante e o corpo minúsculo diante da estrutura de concreto. Perigo calculado ou não? Ao menos o pescoço das pessoas modifica a direção. Olhar para o alto. Olhar para o edifício desamparado. 


Assim começa Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote de La Mancha e Seu Escudeiro Sancho Pança: um capítulo que poderua ter sido do Grupo Teatro que Roda, Goiás. O homem de terno pode ser um trader do mercado financeiro que acaba de perder todo seu dinheiro aplicado nas ações da Petrobrás. Ele caça alguém. Está a procura de algo. Seria a sua parte? Parte no quê? Se esse homem está bem ou não é difícil saber. Lembro-me de jovens viciados em crack que frequentam a região em que estamos. Penso nas pessoas que foram afetadas por inúmeros escândalos em nosso país.

O texto às vezes se perde, às vezes se quebra, às vezes alucina. Mas alucinaria o texto mais do que a cidade? São fragmentos de uma história. Vou preenchendo tudo isso. 


A cena navega, as noivas imprecisas.  O homem e seu terno em frangalhos une-se a um catador de sucata que se diz cansado de promessas. O catador entre uma vida sem ilusões e uma vida sem esperança parece querer mais uma vez acreditar em algo. Caso ele siga Dom Quixote poderá ganhar uma ilha. A cidade ilha aos poucos vai deixando de lado suas fronteiras e a peça que era só um item na cidade acaba por se misturar e arrisca-se virar uma coisa só.

Improvisos acontecem e de inicio fazem me pensar que o que vejo não foi combinado. Uma luta na Av. Sete de Setembro, horário de rush. É aquilo uma briga que aconteceu por acaso ou são atores? Começo a pensar no Show de Truman e sua ilha. Começo a refletir sobre a realidade e sobre a narrativa criada pelos gigantes da mídia. O que é real e o que não é? Ao redor já não sei o que é personagem e o que não é. Será que eu sou uma personagem? Será que sou um fruídor de teatro naquela rua? Será que estou criando uma narrativa ou participando da história?

Um trator. Um carro de policia. Mototaxistas da cidade. Poderíamos pensar que esses são elementos de um espetáculo de gigantes. Poderíamos pensar que tudo isso é róliúdiano demais. Poderíamos pensar que o final onde João Quixote é preso foi tú mãtchi. Mas penso que entre gigantes aparelhos e pequenas emoções esse espetáculo assalta o aparelhamento do espetacular e faz com que o humano que as vezes se sente pequeno se sinta grande. Se sinta parte. Se sinta menos ilha e mais cavaleiro. Se sente mais cidadão dessa cidade e mais perto de um lugar que parece tão longe das janelas dos carros.  Ao fim do espetáculo João Quixote sai preso e nós ficamos livres por policiais numa operação espetacular. E toda a força do espetáculo deixa ainda uma inquietação: Sancho Pança o catador de sucata fica sem ver sua promessa cumprida mais uma vez.

Essa foi sua parte, qual foi a nossa? Mudamos não somente a direção do pescoço, mas creio que podemos ter mudado uma forma de ver a cidade e de ver as relações que nela existem.



[1] Dramaturgo, roteirista; mestrando em Estudos Literários na Universidade Federal de Rondônia.

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