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domingo, 12 de dezembro de 2010

Sobre o 8° Festival - Recife



"Vazios não, os espaços têm cheios."Por Durval Cristovão.
A poesia de Ray Lima demarca o espaço; Pelo leito das palavras corre um rio, e o pátio inunda, os passantes são barreiras de contenção; Mas a poesia escorre pelas brechas. A roda se fecha e a cada pulsar daqueles versos incha e transborda. Dá-se início o VIII Festival de Teatro de Rua do Recife, espocam os fogos de outra celebração; É o acaso que conspira e os deuses do teatro saúdam àqueles homens que com coragem realizam a sua vocação. Uma infinidade de tipos humanos se funde, são poetas, ambulantes, miseráveis, todos acolhidos pelo teatro, pelo encontro. A palavra convida e hipnotiza, o poeta encarna a necessidade dos excessos; Cada palavra uma bala de abalar juízos: "Tirem as máscaras!" É hora de ficar nu, mostrar a si mesmo num ato de provocação e sacrifício, "representamos tão completamente na vida que, para fazer teatro, bastaria cessar a representação", lembrava sempre aos discípulos o mestre Grotowski. O teatro não é a representação da realidade, mas a construção da ilusão, não plasma a vida, constrói a sua própria.
     No centro agora, Amir Haddad, diretor e fundador do "Tá Na Rua", e Júnio Santos fundador do "Escambo" e diretor do "Cervantes do Brasil", os homenageados, dois homens de teatro que escolheram as ruas e nelas realizam o seu desnudamento. Com a clareza dos homens sábios, em fina sintonia com outras forças, disparam as duas vivências contra o peito dos comuns e dos iniciados que ouviam tudo, não com o respeito que se tem a um oráculo, mas, com a ânsia e a curiosidade de ouvir um destino.
O poeta inicia a evocação do espetáculo, de repente rasga a roda "vinte instrumentos e uma garrafa d'água", o "Homem Banda" da companhia "Um Pé de Dois" conduz o bando para o centro do Carmo; Interrompem-se as preces, a igreja parou por um instante com a chegada do cortejo festivo. Surgem uma criança, um vendedor de café, alguns desavisados. A mulher das compras de natal saca o celular, aponta sua câmera para cena e sorri.  
A encenação é conduzida pelo "famigerado dom da improvisação, ou seja, a capacidade de dar a impressão de estar dizendo coisas novas e pensadas naquele momento", tomo emprestado as palavras de Dario Fo. O pátio passa a ser espetáculo e os ruídos são convertidos em música. É o corpo do ator que toca e nos toca com seus sons. Surge uma batuta invisível e da sua regência nasce um coral. Dezenas de vozes são somadas a sua banda, o exército de um homem só contagia todo o contingente. A cada intervenção da cidade o espetáculo respira e se refaz.
À noite as ruas serpenteavam. Está num labirinto é ter a deliciosa sensação de se perder e se achar. Alto José do Pinho não era uma roda, era uma gira de diálogo. Entre danças, declamações e cantos foram discutidos muitos rumos, inclusive o dos vinte anos do movimento "Escambo".
Domingo foi o dia do mestre Haddad e seus cinqüenta e cinco anos de teatro, trinta deles dedicados à rua. "Fui explodindo as relações arquitetônicas com o teatro, fui retirando as cadeiras, as paredes, o palco..." Passou a abrigar sua obra na arquitetura invisível das ruas. Foram as múltiplas relações com esse espaço que deram um novo sentido ao seu trabalho. "A platéia das ruas não é homogênea, não impõe os valores dela". Quando visitamos uma sala de espetáculos nos convencionamos a um ritual mecanizado que só termina com o fechar das cortinas. Nosso olhar é condicionado, nosso foco é a caixa preta, somos obrigados a um "zoom", um recorte, e as relações geralmente são verticais. "A burguesia privatizou o teatro", mais uma afirmação do Amir, esta, talvez, justifique o fato de tantos espetáculos identificarem a lógica da forma com a "lógica da vida". Esta é acomodada, e considera habitualmente, que tudo está em absoluta ordem.  Dentre tantos pontos tocados na assistemática eclosão de idéias do vulcão Haddad, esses foram os mais insistidos durante o bate-papo, por isso resolvi comentá-los.
Para historiadora Margot Berthold: "O teatro enquanto compensação para rotina da vida, pode ser encontrado onde quer que as pessoas se reúnam na esperança da magia que as transportará para uma realidade mais elevada. (...) mesmo se o efeito final for de uma desilusão brutal". Essa certeza me acompanhou nesses dias. A chegada do teatro nas comunidades conduzia o povo a purgação, que por um instante se esvaziava do mundo e penetrava noutro.
Os palhaços foram as grandes personagens desses três primeiros dias de Festival, como esquecer o "Singelo" o homem da última palavra: "Eu faço, eu vou, eu pego, por que quero!"; a "Camomila" engraçada e comovente: "silêncio gente, uma pessoa está morrendo"; ou a dupla de argentinos do "Circo VE, Variedades Escenicas", afinadíssimos, eram palhaços, malabaristas, mágicos, contorcionistas, mímicos. O circo deles – os dois - cabia no seu picadeiro, pouco maior que um tapete de banheiro. De repente, o circo era todo mundo.
Essa capacidade de contagiar e envolver as pessoas parece própria das linguagens de rua, que sempre estão abertas a participações externas e ao contínuo movimento do mundo. É nela que se realiza o anti-produto; é lá o lugar da resistência e da transformação.

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