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domingo, 29 de dezembro de 2013

Um grito necessário: Aqui não, senhor patrão!


Adailtom Alves Teixeira[1]

Todo espetáculo teatral de rua começa no momento em que os artistas decidem qual será o local da apresentação, começam a dispor o material cênico nesse espaço e a dialogar com o público. A esse procedimento seus fazedores chamam de aquecimento da roda ou de público. Uma hora antes da apresentação, no calçadão da Rua Dom Pedro II, no centro de Guarulhos, os integrantes do Núcleo Pavanelli já estava com tudo montado e brincavam entre si e com o público, anunciando, sempre em coro, o espetáculo do dia: Aqui não, senhor patrão! O espetáculo ocorreu no dia 18 de dezembro de 2013, dentro da 5ª Mostra de Teatro de Rua de Guarulhos, realizado pelo Movimento Cabuçu em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura. Ao longo dessa uma hora que antecedeu o espetáculo propriamente dito, o aquecimento da roda ocorreu por meio de piadas e brincadeiras, com o caráter de rebaixamento, principalmente dos atores, poesias, músicas, em que nada e ninguém são poupados, criando, assim um clima favorável, pois desmontam qualquer hierarquia que possa existir entre atores e público. Dessa forma, todos ficaram à vontade, afinal todos estão no mesmo espaço, no mesmo nível, e o que o aquecimento pretende dizer também é que todos são iguais.

Ainda antes de começar, é feito um pedido de licença ao espaço e às pessoas em forma de músicas, sobretudo indígenas e de matriz afro. A cultura do excluídos serve para irmanar ainda mais a todos, ao mesmo tempo em que pré-anunciam o que deve vir pela frente, pois as músicas falam de exploração, de trabalho e de luta. O público é convidado para dançar, afinal, como diz um ator, “a rua é pública”. Para ilustrar que tudo pode, o ator Lucas Branco dança com um adolescente, quebrando os preconceitos que nos são impostos, de que homem não dança com homem. Anunciam os versos da canção: “Ah! Quem deu esse nó/ não sabe dá/ esse nó tá dado/ e eu desato já”.
Começa Aqui não, senhor patrão! Criado em 2011, o espetáculo visa discutir a exploração do trabalhador, passando por espaços e tempos históricos distintos, demonstrando, assim, que não importa as mudanças, o trabalhador é sempre explorado por aqueles que detêm os meios de produção. O espetáculo inicia apresentando um casal, recém casados, que buscam no trabalho o sonho de uma vida melhor. Perpassam pelo trabalho no campo, em um curtume e uma fábrica; demonstrando, em quase cem anos de história, como os mesmos não decidem sobre suas condições de vida. Se, por um lado, poderíamos achar ilógico tanto tempo de vida e de trabalho, por outro, esse casal é apenas a representação do homem e da mulher que trabalha, símbolo dos trabalhadores não são personagens com histórias individuais, com começo meio e fim. Trata-se de um recurso épico muito interessante e os assistentes logo se identificam. Aliás, as personagens são rodiziados pelos atores, não se fixando a nenhum ator ou atriz.

O Núcleo Pavanelli surgiu e 1999, unindo circo e teatro de rua. Esses dois elementos continuam muito fortes como demonstra o espetáculo em epígrafe. O circo tem deixado as cenas ainda mais teatrais, na medida em as técnicas circenses não são utilizadas como mera exibição de habilidades, mas inseridas de forma bem contextualizada. O malabares e a pirofagia, por exemplo, ilustrando o excesso de trabalho e de exploração, a acrobacia utilizada em uma luta entre dois trabalhadores.
O grupo sabe que arte e sociedade não estão separados e que seus criadores não devem se furtar a discutirem sem tempo histórico. Assim, o espetáculo tem recurso didático e as músicas cumprem um grande papel. Em uma delas, por exemplo, perguntam: “Quem hoje sabe o que é luta de classes? Quem luta pelo que não sabe?” O espetáculo vai se desenvolvendo para que o trabalhador tome consciência que apenas juntos podem realizar algumas conquistas, enfrentar o patrão. Assim, finaliza em uma greve – que sabem ser apenas um primeiro passo da luta – que o público adere. Bastante simbólico a união entre público e atores, ambos trabalhadores. Assim, o espetáculo inicia criando a possibilidade de igualdade entre cena e assistência, entre atores e público e se encerra com todos irmanados por uma causa comum: a luta contra um sistema desagregador e explorador; luta simbolizada em forma de greve.
O espetáculo é bastante musical, tudo executado ao vivo. As músicas ora envolvem, ora distanciam, ora explicam. A música é tão forte, que em uma cena em que tudo ocorre por meio da fala – a cena em que o patrão faz o pagamento mensal – fica um pouco mais lenta em relação as demais.

Ao término do espetáculo, os atores deixam claro que os patrões encontraram outras formas de explorações e que a greve é apenas um passo na organização, por isso o Núcleo Pavanelli se junta a movimentos sociais que tem a perspectiva de acabar com a exploração do homem pelo homem. Depois, o microfone fica aberto para quem quiser falar. Destaco duas falas. Uma de um senhor, que disse ser morador de rua, que agradeceu pelo espetáculo e afirmou que por viver em condição de rua, não o deixam trabalhar, é um desterritorializado do trabalho; outra fala veio de uma criança, Jéssica, que disse ter um sonho: gostaria que quando crescesse fosse respeitada, já que sua mãe, no trabalho dela, não é. Denúncias claras de um sistema que oprime, explora e nos separa de nossa humanidade.
Depois disso, vem a festa, um maracatu, pois como afirmou o ator em cena: “não existe revolução sem festa”. O espetáculo denuncia, ensina e festeja com o público, afinal como escreveu Paulo Leminski em Toda poesia (2013):
em la lucha de clases
todas las armas son buenas
piedras
noches
poemas
Por fim, importante registrar o nome de quase todos que participaram desse processo. Atores: Beatriz Barros, Lucas Branco, Marcelo Roya, Mizael Alves, Otávio Correia, Sabrina Motta, Sidney Herzog e Tiago Cintra. Direção de Marcos Pavanelli. Direção musical de Charles Raszl, Dramaturgia de Simone Brites Pavanelli, com orientação de Calixto de Inhamuns.



[1] Ator, diretor; mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp; integrante do Núcleo Paulista de Fazedores e Pesquisadores em Teatro de Rua; articulador da RBTR e do MTR/SP; integrante do Buraco d`Oráculo.

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