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segunda-feira, 13 de maio de 2013

A atualidade política do teatro documentário


Fernando Kinas[1]

             O teatro documentário, ou documental, constitui um conjunto de ideias e práticas teatrais complexo e estimulante, seja sob o ponto de vista estético, quanto social. Pouco estudado e praticado no Brasil, suas possibilidades de utilização continuam, portanto, insuficientemente exploradas. Para investigar a atualidade desta modalidade teatral seria preciso aliar a investigação teórica com a análise da produção teatral contemporânea, brasileira e estrangeira. Esta tarefa poderia, ainda, contribuir para a reflexão geral a respeito de temas que lhe são correlatos: novas exigências no trabalho de interpretação, impacto no ensino teatral, relação com a crítica especializada, alterações na recepção e caráter inter ou transdisciplinar.
A matriz europeia do teatro documentário – existem formas muito variadas de teatro documentário, da América Latina à Ásia – tem um ponto de inflexão nos anos 1960, com a obra do dramaturgo Peter Weiss (1916-1982). Para ele, o teatro documentário filia-se à tradição do teatro político e realista (proletkult, agitprop, experimentos teatrais de Piscator, peças didáticas de Brecht). Mesmo não sendo precursor – diretores russos e alemães dos anos 1920 já tinham dado exemplos destas práticas –, Weiss introduziu de forma radical o "documento" na cena (atas, relatórios, estatísticas, comunicados da bolsa, entrevistas, balanços bancários, cartas, reportagens).
Embora defendendo a recusa de toda forma de invenção (certamente uma reação ao status quo teatral da sua época), o teatro documentário, tal como proposto por Weiss, mantém a condição de obra artística: "Mesmo quando tenta se liberar do quadro que faz dele um meio artístico, mesmo quando abandona as categorias estéticas (...) o teatro documentário é no final das contas um produto artístico e deve sê-lo, se quiser justificar sua existência."[2] Para Weiss, o teatro documentário mostra "a imagem de uma parcela da realidade arrancada ao fluxo contínuo da vida" e tem como objetivo "estabelecer um modelo das contradições reais". Evidentemente, na continuação direta da tradição brechtiana, este mecanismo deve revelar a condição histórica da atualidade e a possibilidade da sua alteração. A tarefa deste tipo de teatro seria, então, fazer a crítica radical da camuflagem, da falsificação da realidade e da mentira.
Esta proposta teatral, pelas suas opções formais e de conteúdo, pretende investigar a realidade social, opondo-se, portanto, à desinformação e às diferentes estratégias de opressão e dominação. É preciso lembrar que Peter Weiss nasceu em plena Primeira Guerra Mundial, viveu a Segunda e escreveu sob o impacto da Guerra do Vietnã e das lutas anticoloniais (Weiss escreveu, por exemplo, uma peça sobre a libertação da Angola, Canto do Fantoche Lusitano).
Apesar de diferentes visões artísticas e políticas relacionadas ao teatro documentário, entre as quais não se pode ignorar aquela que deriva da vaga pós-moderna, pode-se afirmar que parte importante delas apontam na direção da inteligibilidade da atualidade, isto é, a realidade pode e deve ser explicada. Cabe, então, localizar e estudar experiências teatrais inspiradas nesta matriz (tanto sob o ponto de vista formal, como político) que participam desta tarefa de compreensão do momento histórico atual.
O teatro documentário é, portanto, uma forma artística veiculadora de potenciais novas formas e novos conteúdos, neste sentido, ele está em sintonia com o rearranjo que caracteriza o teatro contemporâneo das últimas décadas. Uma das vertentes deste debate diz respeito à recusa do regime ficcional canônico. Anatol Rosenfeld, na época em que estas experiências estavam no apogeu (década de 1960), afirmou que "tanto Hochhuth [escritor e dramaturgo alemão, nascido em 1931] como outros expoentes do teatro documentário procuram eliminar, na medida do possível, o elemento ficcional".[3] Ainda que um puro teatro de relatório, pela própria natureza do dispositivo teatral, não pareça possível, é inegável a recusa da imitação, a ruptura com a ilusão cênica e o interesse pelo exame das estruturas sociais no lugar dos embates entre subjetividades. Mesmo se há dificuldades em evitar o elemento ficcional, como afirma Bernard Dort[4], Weiss e Kipphardt (cf. O caso Oppenheimer), aproximam-se da exposição imediata (não mediada) dos fatos. Este trabalho dramatúrgico, sobretudo no caso de Peter Weiss, não parece ter sido inteiramente absorvido e desenvolvido pelas novas gerações.
No entanto, hoje são frequentes os trabalhos cênicos que exploram a utilização do material documental em cena, indício da atualidade desta modalidade teatral. Nossa hipótese, confirmada por inúmeros casos recentes, no Brasil e no exterior (Luis Antônio - Gabriela, de Nelson Baskerville; Accidens, matar para comer, de Rodrigo Garcia; Genova 01, de Fausto Paravidino; Rwanda 94, de Jacques Delcuvellerie; O interrogatório, de Eduardo Wotzik; Tableau com existências marginais, de Björn Auftrag e Stefanie Lorey), é de que há, simultaneamente, referência ao modelo histórico de teatro documentário e exploração de novas possibilidades. Os resultados estéticos e políticos destas experiências, evidentemente, são desiguais.
Peter Weiss sistematizou e exercitou um tipo de teatro que, segundo ele mesmo, abandonou "os cânones estéticos do teatro tradicional" e desenvolveu "novas técnicas adaptadas às novas situações"[5]. Seria importante, agora, identificar e estudar estas novas possibilidades do teatro documentário contemporâneo. O surgimento nos últimos anos de coletivos teatrais que rejeitam os padrões da produção canônica e comercial mostram o vigor da produção atual. Muitos destes grupos dialogam explicitamente com a tradição do teatro documentário. Analisar estas contribuições significa também extrair reflexões capazes de extrapolar o âmbito restrito em que elas ocorrem. Do conjunto destas experiências pode-se vislumbrar um modo de trabalho cênico e de reflexão capazes de servir como referência para a ação teatral crítica.
Seria preciso destacar alguns fenômenos relacionados ao teatro documentário, como a reorganização da ação do ator/atriz em função de exigências diversas daquelas feitas pelo teatro dramático, uma vez que são alteradas noções como as de personagem, conflito intersubjetivo, progressão e desenlace. Via de regra, estes marcadores clássicos do teatro perdem sua centralidade. Reflexos importantes destas práticas teatrais documentais também podem ser percebidas na recepção, já que o público estaria menos preparado para lidar com estas propostas cênicas avessas ao teatro "aristotélico". Temas correlatos também mereceriam análise mais detida, como a relação entre teatro documentário e performance; o "efeito do real" (a expressão, no âmbito do cinema, foi usada, entre outros, por Ismail Xavier[6]); o retorno, potencial, ao subjetivismo (teatro biográfico, de depoimento ou confessional); as revisões da fronteira entre arte e vida e o reivindicado "fracasso da representação" (cf., por exemplo, as produções do Rimini Protokoll, Forced Entertainment e coletivo LFKs).
Um programa de estudo se apresenta e suas implicações são potencialmente ricas. Para que isto aconteça é decisivo não desvincular as esferas formais e de conteúdo, estabelecer uma base conceitual sólida e ancorar a análise na realidade social, definindo campo, valores e horizonte políticos.

Publicado originalmente em A Gargalhada nº 25 set de 2012.


[1] Doutor em Teatro pela Universidade Sorbonne Nouvelle e Univerdade de São Paulo. Dirige desde 1996 a Kiwi Companhia de Teatro/Cooperativa Paulista de Teatro.
[2] Peter Weiss, "Notes sur le théâtre documentaire", in Discour sur la genèse et le déroulement de la très longue guerre de libération du Vietnam illustrant la nécessité de la lutte armée des opprimés contre leurs oppresseurs, Paris, Seuil, 1968, p. 10. As próximas citações são igualmente deste texto.
[3] Anatol Rosenfeld, "O teatro documentário", in Prismas do teatro, São Paulo, Perspectiva, 2008, p. 122.
[4] Cf. Bernard Dort, O teatro e sua realidade, São Paulo, Perspectiva, 1977, pp. 28-30.
[5] Peter Weiss, op. cit., p. 14.
[6] Cf. Ismail Xavier, Iracema: o cinema-verdade vai ao teatro. In: Devires - Cinema e Humanidades, v.2. n. 1, 2004, p. 70-85.

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