RELAMPIÃO: O RETORNO DO MITO?[1]
Adailtom Alves Teixeira[2]
Todo o mundo já ouviu
Falar sobre Lampião,
O famoso cangaceiro
Corajoso e valentão
Que, na região Nordeste,
Assombrou todo o sertão.
Lampião: herói ou bandido? João Firmino Cabral
Manhã de um domingo nublado, dia 25 de novembro de 2012, um grupo de atores de dois grupos, Paulicea e Miolo e outros convidados, se preparam para apresentar o espetáculo Relampião dentro da programação da 7ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas na Praça Carlos Kozeritz, no Jardim Julieta, zona norte da cidade de São Paulo. As pessoas do local tem certa familiaridade com a arte teatral, pois é ali que o Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo desenvolve diversas atividades, dentre as quais sua própria mostra de teatro. A praça é cortada por uma avenida bem movimentada e é também ponto final de transporte coletivo e ainda é rodeada por conjuntos habitacionais populares, todo esse fervilhamento de gente é complementada pela feira livre que ocorre aos domingos naquele local. Últimos ajustes no equipamento de som e os atores estão prontos para começar a apresentação de Relampião.
O prefixo re, de origem latina, de acordo com Mini Aurélio (2010: LXXXV), tem o significado de para trás, repetição, intensidade, mudança de estado. Dessa forma, podemos dizer que o termo relampião seria um desejo de repetir algo do passado, com certa intensidade, para, assim, mudar determinado estado de coisas. O desejo traduzido no termo tenta aproximar, por meio do espetáculo, o cangaço das questões cotidianas na atualidade. "O que há em comum entre a luta do cangaço e as lutas pela vida na contemporaneidade?", perguntam-se todos envolvidos no projeto em seu material gráfico distribuído ao termino do espetáculo.
Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, após perder o pai (assassinado pela polícia) cria um bando de jagunços que apavorou o sertão nordestino, tornando-se depois um mito contraditório: bandido ou herói? O espetáculo Relampião também tem como mote as perdas. Cada personagem perdeu ou perde algo todos os dias: a mulher que busca ter sua casa, o desempregado, o sambista que teve sua música roubada (ou "vendida", como depois se descobre), a mãe que perdeu seu filho em mais uma violência da grande cidade... inúmeras são as perdas, por isso o artesão Virgulino, personagem do espetáculo, alude ao passado na tentativa de refazer o presente, ao se dirigir diretamente ao público: "Tá cheio de Lampião por aí, basta reluzir". Todas as personagens trabalham ou "vivem" na rua, são o que já se chamou em certo momento da história de lumpenproletariado ou, contemporaneamente de refugos humano.
A dramaturgia, apesar de ter sido finalizada por Solange Dias, foi criada por todos os atores, que fizeram suas pesquisas e levaram para a sala de ensaio. Aysha Nascimento, que faz a mãe que perdeu seu filho na violência da grande cidade leva à cena um texto no qual fundiu Carlos Drummond de Andrade e Marcelino Freire, apresentando um discurso vigoroso sobre a perda e o enfrentamento das mazelas. Discurso, sim. No espaço épico da rua, quando bem feito e contextualizado, tudo é permitido.
Alfaias, sanfona e rabeca, sons característicos do Nordeste se fazem presentes no espetáculo e nos transportam no tempo e no espaço. A música apresentada ao vivo, sem dúvida, faz com que o espetáculo conquiste o público, seduza os ouvidos e o corpo de todos. Daí a importância de mencionar a direção musical de Charles Raszl, que possibilitou que o ambiente nordestino se fizesse presente também pela música. Plasticamente o espetáculo é muito bem resolvido, encanta e agrada os olhos. Este é o primeiro espetáculo dirigido para rua por Alexandre Kavanji, daí alguns pequenos problemas como o personagem Virgulino, que tem chave dramática, os atores ainda muito presos às suas marcas, ignorando, em alguns momentos a relação que se faz necessária na rua. Mas isso a própria rua e a relação com o público tende a modificar. Kavanji, que já tem uma longa história teatral, ganha o espaço aberto. Que bom!
Se o Lampião do passado começou sua trajetória a partir da perda, depois veio a cometer muitas atrocidades também, tanto quanto as sofridas por ele e sua família. O Lampião do presente, por meio do espetáculo, também comete um equívoco – claro que incomparável ao Lampião do passado, mas digno de nota: ele fica todo o espetáculo procurando reunir um bando para enfrentar seus problemas, mas ao conseguir, vai enfrentar justamente um dos seus, um fiscal que ao longo do espetáculo procura um emprego de carteira assinada (que representa uma melhor dignidade em sua concepção) e encontra emprego no ambiente de enfrentamento dos seus. Essa contradição não é resolvida e nem desenvolvida, o espetáculo finaliza com o bando em claro enfrentamento com o fiscal, mas se este representa a opressão clara e direta, a verdadeira máquina que faz esse mecanismo funcionar se quer é tocada, isto é, a estrutura que está por trás disso tudo bem como o sistema que a gera. Nesse ponto, penso eu, reside o maior problema do espetáculo.
[1] Texto escrito para a revista Arte e Resistência na Rua, publicação do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo.
[2] Mestre em Artes e Licenciado em História; membro do Núcleo Brasileiro de Pesquisadores de Teatro de Rua; articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua; ator do Buraco d`Oráculo.
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