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segunda-feira, 13 de maio de 2013

CARTILAGENS – tensionando, conflitando, sem atrito

Por Ray Lima[1]

 

Aqui a cena faz tchan!!!

e começa por mim o espetáculo

 

"o homem-não-arte não sente não vê[2]

                                                           não dá importância ao homem-arte

                                                           mas o homem-arte olha

                                                           observa estuda absorve transforma absolve

                                                           transumaniza o homem-não-arte

 

                                                           justo aí eu existo

                                                           o espetáculo."

 

 

 

Iniciamos esta breve reflexão sobre a cenopoesia pelo comentário do poeta carioca Zé Terra que fala a partir do que vivenciou ao assistir o espetáculo "Lâminas", durante o lançamento do livro no qual o referido espetáculo se baseou, na casa do Tá na Rua, na Lapa, Rio de Janeiro, 2009.

 

"Cenopoesia o Não-Espetáculo"

 

A respeito da cenopoesia, espetáculo poético-músico-dramático, se é que assim podemos definir, criado e reinventado pelo poeta Ray Lima, tem que se ter em mente o fato de estarmos diante de algo nunca feito antes. E talvez daí resulte a grande dificuldade deste tipo de abordagem.

Não é possível na intervenção cenopoética, por parte do público, a absorção da música, do poema, ou da cena dramática separadamente, e nem em conjunto ou fundidos num só resultado.  Na verdade podemos dizer que a cenopoesia nos subtrai qualquer tentativa de reter sons, imagens ou palavras.  Só nos é permitido sentir.  O que nos é apresentado é um roteiro de sentimentos, um roteiro emocional, alias, como deve ser a poesia: que tem como sua função principal a comoção.  Na cenopoesia nada pode ser mensurado ou decodificado.  O espetáculo cenopoético coloca o espectador-ouvinte-leitor em constante movimento sensorial e físico, mas de tal intensidade que em muitos momentos nos colocamos inertes sem saber para onde serão levados pensamentos olhos e sentimentos." (José Terra. Poeta e escritor do Rio de Janeiro)

 

Consideradas as palavras generosas do poeta, acrescentamos que a cenopoesia como obra aberta permite-se ser praticada a partir de diversos caminhos, às vezes muito para além das traçadas e conhecidas possibilidades formais e não formais das artes cênicas. Por isso costumamos dizer que a cenopoesia é transcênica e dentre suas várias possibilidades como prática estão:

 

O espetáculo cenopoético - desenhado com base em um roteiro trabalhando determinado(s) tema(s), a exemplo de Linhas Cruzadas, montado em 1990 pelo grupo Arribação-RJ e Lâminas, montado pelo Grupo Pintou Melodia na Poesia-CE, em plena circulação. Assim como há no teatro a leitura dramática, há na cenopoesia a leitura cenopoética como a realizada na abertura do 9º Congresso da Rede Unida em Porto Alegre;

 

A intervenção cenopoética - que atua buscando dialogar referenciada pela razão cenopoética com e sobre outros discursos em situações como seminários, reuniões, rituais, congressos, protestos, simpósios acadêmicos, protestos, aulas formais, etc.;

 

O desafio de repente - uma linguagem-espetacular de improviso embasada em repertórios criativos e cumulativos de um ou vários grupos ou de um cenopoeta, capaz de se inserir e interagir com quaisquer contextos, otimizando e potencializando os recursos cênicos, artísticos, culturais e intelectuais disponíveis no momento em que o espetáculo se realiza, dando vazão a um lastro interminável de dialogicidade e interatividade. Citamos como exemplo de desafio de repente o espetáculo Pintou Melodia na Poesia, montado pelo grupo de mesmo nome, e A Poemia do Mundo, montado por grupos do Movimento Escambo (Cervantes do Brasil-Apodi-RN, Pintou Melodia na Poesia-Maranguape-CE, Arte Riso-Umarizal-RN, La Trupe-Natal-RN e Arte Jucá-Arneiroz-CE);

 

A vivência cenopoética – uma experiência que também pode ser ritualística e de total envolvimento coletivo, de corpo inteiro:

 

"Se tiveres que me acolher[3]

que me acolhas por inteiro,

de vida inteira, cultura adentro."

 

Dá-se de várias maneiras. Geralmente, partindo do que cada pessoa (ator, atriz, cenopoeta, cidadão, cidadã do mundo...) traz consigo, abre-se uma roda onde se inicia o ritual de nivelamento, fruição e circulação dos saberes e energias criativas até a arte de cada um espocar e tomar-se de todos, transformando-se numa festa interior que se externa com muita liberdade e solidariedade. Mais do que a troca, a criação coletiva, a soma individual e grupal de conhecimentos, a integração e diálogo entre as diversas linguagens presentes, as possibilidades de novas expressões, novos rascunhos de tecnologias leves, etc. é o forte das vivências. Assim como o desafio de repente, tem hora para começar, o fim é determinado por quem participa. Um exemplo de vivência cenopoética é o que vivemos durante dois dias em Caucaia-CE, no IV ENEPS, em 2008, na Tenda da Cenopoesia ou ainda os processos vividos no XXIV Escambo Popular Livre de Rua em Umarizal-RN, em 2008, e mais recentemente com o grupo Buraco d'Oráculo e seus convidados, em São Paulo, de 11 a 18 de setembro de 2010.

 

Ademais, a linguagem cenopoética é centrada no diálogo, carregando consigo e explicitando todas as contradições e tensões próprias de uma relação dialógica. Por outro lado precisa afirmar-se como linguagem e discurso competente, como razão possível, indo além de uma visão da arte como adorno, bobo da corte, entretenimento, arte pela arte entre outras coisas do gênero como se fosse totalmente alienada de um "modus pensanti" ou desprendida de sua razão (poética). A cenopoesia e a arte de modo geral para muitos não passa de um fantasioso, prazeroso e alegre momento que antecede outro autosuficiente - repleto de razão e eficácia – para dizer a mesma coisa que arte diz só que de modo duro, num modelo engessado e masoquista, capaz de morder a própria cauda e envenenar-se, estendendo-se por horas a fio de prazer duvidoso, torturante até e sem alegria, sem muitas vezes nada propor de novo, de concreto, "sem razão de ser," onde tudo se encaminha, mas pouco faz caminhar em sua arrogância quando sua verdadeira razão seria efetivamente "não ser."

 

A cenopoesia, claro, superintende-se para sequer desejar suprimir outras linguagens ou formas de pensar, interpretar e expressar ideias sobre o mundo, mas suprir esses vazios existentes no corpo do discurso hegemônico, fazendo deles a obra prima, problematizando o mundo, produzindo amorosidades, construindo sínteses, novas razões, novos sentidos. Sua função – cremos que não apenas da cenopoesia, mas da arte em geral – parece mais uma cartilagem que pouco se lhe dá importância, no entanto, quando falta, os atritos, as artrites, as dores aparecem, tornando o ser hipertenso, "enferrujado," paralisado ou impedido de andar. Sem cartilagem os membros do corpo vão ficando sem articulação, sem mobilidade (e quando se tenta acontece com muito sacrifício, muita dor), desarticulando o corpo inteiro, criando fissuras incuráveis na relação entre eles. Sem cartilagens não há corpo, mas apenas esqueleto. Como nos ensina Aurélio, as cartilagens são um "tecido conjuntivo especializado que constitui a maior parte do esqueleto do embrião, participa de modo importante do processo de crescimento do corpo, serve de modelo para o desenvolvimento da maioria dos ossos, forra extremidades das superfícies articulares desses, e constitui certas partes do esqueleto de animais adultos." Elas ainda podem ser, segundo Aurélio, "elásticas, fibrosas e hialinas."  Talvez, a essencialidade da arte na formulação e na expressão de um projeto de educação popular estaria também no fato de abranger e incorporar diferenciadas formas de dizer e sentir o mundo que não estão ao alcance de outras linguagens humanas que, por sua vez, eliminam vozes importantes, marginalizando e excluindo-as pela peneira elitista do circuito dos saberes letrados e acadêmicos. Tal segregação empobrece, torna esqueléticos o conhecimento e o homem, enrijece a classe acadêmica obrigando-a ter uma vocação purista, quase fascista.

 

A cenopoesia mais do que fala, rompe com o discurso palaciano e academicista para redizer o que ele diz há séculos tão ou mais eficientemente e mais leve, expressando também o que ultrapassa as margens cifradas desse discurso, com outros sentidos e formas, e que seria indizível por meio unicamente do discurso de tradição ocidental, canônico e hierarquizado. E o faz partindo de uma linguagem cheia de impurezas, misturada e esteticamente modificada, apelando para a eloqüência dos sentidos novos que a constroem, seduzindo os sujeitos para o exercício da comunicabilidade aberta, libertária e espontânea através das interfaces solidárias e amorosas das linguagens artísticas. O cenopoético se exercita indicando o fim da solidão ou do egocentrismo das linguagens e da estagnação dos discursos de travas, das correntes estéticas que encurraladas pelos donos do saber para existir pregam o fim do outro, da outra. E por isso mesmo sugere como caminho a construção de um espaço de comunhão entre os saberes. Onde os diferentes estão no mesmo lugar, desfrutando e usufruindo a riqueza coletiva do pensar criativo sem abdicar de suas cores e brilhos inatos, das motivações e propriedades que lhes dão forma e sentido.

 

Se pudéssemos considerar a arte como lugar de encontro do ser com suas múltiplas possibilidades criativo-inventivas; de ensinar e aprender, refletir e agir com e sobre o mundo, a cenopoesia seria o lugar de encontro das linguagens com todas as suas capacidades dialógicas, transitivas e infinitamente expressivas, transformadoras e autotransformadoras: de criadores e criaturas; dos praticantes e dos mundos onde nascem, vivem, morrem ou se perpetuam os homens pela força amorosa do encontro de si e entre si através de suas artes." E nesse movimento de libertação, inclusão e respeito mútuo, de profunda amorosidade podermos sentir e expressar em cada canto dos universos:


"Quando a gente se encontra[4]

É bem mais que um encontro

O som, a cor, aquele onto -

O que haverá de ser

O nosso amor,

Estranho amor,

O meu amor por você."

 

Recorremos à Vera Dantas, que se referindo à prática cenopoética em sua tese de doutoramento centrada na experiência das Cirandas da Vida, diz:

 

"Considerando essa contextualização, a linguagem "cenopoética" ocupa o centro das rodas das Cirandas da Vida, também na perspectiva pedagógica de contribuir para a superação da fragmentação presente nas práticas educativas em saúde. Nesse sentido, o exercício da linguagem "cenopoética" parece revelar-se ao mesmo tempo como uma forma singular de produção artística onde dialogam diversas linguagens e também como estratégia educativa a partir da qual é possível refletir e problematizar a realidade, lançando mão de inumeráveis possibilidades de criação e expressão."

 

Torna-se cada vez mais evidente – a cenopoesia tem demonstrado nas oportunidades que a ela tem sido ofertadas – sua potência e leveza, inclusive como ferramenta pedagógica em processos vivenciais de acolhimento, humanização, educação popular e produção de conhecimento e caminho estético. Dessa forma vem destravando relações e propiciando diálogos densos, no sentido de promover e construir ambientes favoráveis à dialogicidade entre pessoas e saberes artísticos e científicos, formais e não formais. Tem possibilitado reflexões e práticas humanizadoras em diferentes espaços e lugares. Sem desprezar nenhum caminho, mas buscando o seu próprio, vai fazendo seus alicerces e atuando desde um aquecimento intelectual ao nivelamento de energias, passando por leituras, intervenções, espetáculos, desafios de repente, vivências, reorientando práticas, sugerindo novos sentidos e formas para o sentir/pensar o mundo e a vida. Não obstante, tudo isso requer um esforço humano diário e contínuo quase sem fim. Trata-se de um problema de postura, mas também de cultura, de estrutura mental. Daí sentirmos que levaremos algum tempo para produzir conhecimento e disseminá-los sem medo e sem a marginalização da alegria. Dá-nos a impressão de que onde se pensa elege-se a carranquice e se dispensa o prazer e a festa que nossa gente tanto sambe, aprecia e domina. Associar alegria ao ato de pensar e planejar a vida ainda soa como uma bruta heresia. A alegria, a festa de que falamos aqui não se refere ao descompromisso com a vida, à balbúrdia, mas à sabedoria popular de tratar os grandes problemas da vida com humor, sem crise, com a liberdade e a grandeza de recriá-los para de novo se reencantar com aquilo que há pouco lhe atormentava.

 

Tudo passa também pela forma e expressão que sabemos/desejamos dar aos nossos sentimentos e conhecimentos produzidos, pela relação que estabelecemos a partir deles com o outro e pela lógica que queremos atribuir aos sentidos que construímos. Como justificar tanta criação, tanto conhecimento represado ou jogado no lixo e que sequer circula nos corredores das universidades, das redações dos jornais, das editoras, das mídias em geral?

 

"Quanto o povo cria[5]

e não sai na imprensa

de estética de fé

de negócio e ciência

quanto pensa e faz

quanto sonha inventa

de amor sabe tanto

a imprensa não diz."

 

Finalmente, aproveitando a potência criadora da nossa gente, dos nossos artistas poderemos não apenas enriquecer a ciência e fortalecer a luta em favor dos menos favorecidos, mas com eles nos reencantarmos pela reinvenção do mundo. Que ao valorizar seu olhar, ampliaremos nossos olhares, recriando os modos de pensar/agir/expressar, cuidando sempre da qualidade das relações, das nossas cartilagens. Para, "seguindo sem segredo/a[6] alegria, a fantasia, a ousadia, a utopia/da cultura popular," ir experimentando cada ato da história como se fosse o último sem perder o gosto e a capacidade de reinventá-la a partir de nossas práticas e reflexões cenopoéticas, bem como dos cenários infinitos que precisamos construir para manter a vida esse espetáculo mágico, desafiador e excitante que se termina em mim começa em outro ou outra logo ali:

 

"outra cena outra máscara[7]

outra cena outra máscara

outra cena outra máscara

infinitas vezes

infinitas máscaras

o homem se completa assim

 

aqui a cena faz tum! tum!!

termina o espetáculo

termina por mim"

 

 

 "Quantos seres sou eu para buscar sempre do outro ser que me habita as realidades das contradições? Quantas alegrias e dores meu corpo se abrindo como uma gigantesca couve-flor ofereceu ao outro ser que está secreto dentro de meu eu? Dentro de minha barriga mora um pássaro, dentro do meu peito, um leão. Esse passeia pra lá e pra cá incessantemente. A ave grasna, esperneia e é sacrificada. O ovo continua a envolvê-la, como mortalha, mas já é o começo do outro pássaro que nasce imediatamente após a morte. Nem chega a haver intervalo. É o festim da vida e da morte entrelaçadas."

Lygia Clark

Texto publicado originalmente em A Gargalhada nº 18, out/nov 2010.

[1] Cenopoeta, criador da cenopoesia e fundador do Movimento Escambo Popular Livre de Rua com Junio Santos, Vera Dantas, Hélio Júnior e outros homens e mulheres de Teatro do Rio Grande do Norte e Ceará.

[2] Lima, Ray. aqui a cena faz tchan!!! – Ultrapassagens. Expressão Gráfica.Fortaleza-Ce: 1994

[3] Lima, Ray. Roteiro Cenopoético para curso de terapia comunitária. Beberibe-CE: 2008.

[4] Lima, Ray.  De Onto a Onto – In Roteiro Cenopoético Lâminas 2009.

[5]Lima, Ray. Cirandas da Vida – CD Fortaleza:2009

[6] Lima, Ray. Atos de Infância. Uma Vila Chamada Zumbi. Aracati,1998.

[7] Lima, Ray. Ultrapassagens. Expressão Gráfica. Fortaleza-Ce;19994.


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