Jussara Trindade[1]
O verbete recepção é definido pelo Dicionário de Teatro de Patrice Pavis – importante obra de referência para os estudos teatrais da atualidade - como "interpretação da obra pelo espectador" e "análise dos processos mentais, intelectuais e emotivos da compreensão do espetáculo". Mas, ainda que logo a seguir o autor utilize como recurso explicativo uma imagem do espectador como que imerso "num banho de imagens e sons", ao desenvolver suas considerações sobre os códigos perceptivos da recepção a atividade teatral é descrita apenas dentro de um quadro referencial visual, corroborando a tendência de apreensão do espetáculo ainda sob os parâmetros da perspectiva - conceito da pintura que inseriu, no palco renascentista, o princípio cartesiano de separação radical entre observador e objeto observado, entre espetáculo e espectador.
Numa época ávida por explicações científicas, a noção de perspectiva ofereceu ao teatro burguês meios de criar, sobre um painel plano colocado no fundo da cena, a ilusão da profundidade em um palco espacialmente limitado. A inovação trouxe o espaço tridimensional para dentro das salas teatrais, substituindo a visão real da vida cotidiana pela ilusão "realística" do ponto de vista do espectador ideal, sentado no centro da plateia. Desta forma, o teatro burguês não teve mais qualquer necessidade de espaços abertos, pois podia inventar o seu próprio mundo "real" a partir das leis da perspectiva visual. Enquanto isso, do lado de fora das salas fechadas, o teatro que se realizava em espaços públicos da cidade permanecia atuando a partir de uma realidade multidimensional, dada não pela ótica de um observador estático e distanciado da cena, mas pelo deslocamento do espetáculo no espaço e pela participação ativa daqueles que o acompanhavam, em seus movimentos e sons.
É a partir da ideia dessa recepção multissensorial - por parte não só de um espectador, mas um espectador-ouvinte - que defendo aqui a necessidade de ampliarmos os nossos canais perceptivos, aprofundando o entendimento do espetáculo de teatro de rua de modo a percebê-lo como uma arte capaz de abranger simultaneamente várias camadas de recepção igualmente importantes. Não se trata, evidentemente, de substituir uma primazia (visual) por outra (auditiva), mas de mergulhar mais fundo na obra de arte, e absorver o fenômeno teatral por outras vias que a modernidade renascentista, em seu ideal de Ciência, frequentemente deixou à sua margem. Trata-se de compreender o espetáculo teatral de rua como obra artística essencialmente audiovisual, e não apenas visual.
Nesse sentido, o caminho que proponho abordar é o sonoro-musical, ou seja, o da audição e da escuta – dimensão sensorial que transcende o fenômeno estritamente acústico, para abranger esferas mais amplas do humano, inscritas também no social, no cultural, no urbano e no contemporâneo. Se o "ouvir", possibilitado pelo aparelho auditivo, cumpre uma função fisiológica, o ato da "escuta" vai além e se converte num meio para a atribuição de sentido do mundo, pois é também uma construção histórico-cultural e, como tal, condicionada pela época na qual está inserida (HARNONCOURT, 1998). Ou seja, aquilo que ouvimos como "som" também nos informa sobre a realidade circundante, ajudando-nos a lembrar, associar, raciocinar, tomar decisões; enfim, a sobreviver no mundo e, também, transformá-lo.
A multidimensionalidade do teatro de rua coloca em questão a noção teatral de recepção enquanto processo estritamente visual, o que poderia ser sintetizado na ideia de escuta cênica como um modo de recepção próprio dessa modalidade, uma vez que na rua o espectador mantém com o espetáculo uma relação mais complexa do que aquela que foi historicamente definida pelo palco renascentista. Em meio aos múltiplos e incontroláveis estímulos – especialmente visuais e sonoros – presentes no espaço urbano, o teatro de rua é potencialmente um centro para o qual tende a convergir a atenção de um público que, a princípio, se encontra ali de passagem; e a musicalidade do espetáculo é um fator essencial neste processo, motivo pelo qual muitos teatristas de rua tornam-se, também, atores-músicos.
Frequentemente, é a música – mobilizada pela escuta cênica – o fator determinante através do qual o espectador eventual da rua se sente atraído pelo espetáculo e decide interromper o seu trajeto cotidiano para assisti-lo, ou mesmo acompanhá-lo num cortejo. É amiúde pela musicalidade que um espetáculo de rua obtém sucesso no desafio de instaurar, no ambiente caótico e fragmentado da cidade contemporânea, um espaço cênico capaz de religar o cidadão às suas matrizes mais profundas, restaurando o seu sentido de pertencimento a uma comunidade, a um lugar.
Mas, a que se poderia atribuir esta notável capacidade? Segundo pesquisas no campo da neurologia e da psicoacústica, estímulos sonoro-musicais criam imagens sonoras na mente do ouvinte.
Originalmente, a noção de imagem sonora se relaciona com um tipo de construção mental pré-conceitual, pois é, basicamente, um padrão de impulsos neurais interpretado pelo cérebro como a percepção sensível daquilo que é captado pelo ouvido. As imagens sonoras – ou seja, as imagens mentais evocadas por sonoridades – formam-se no córtex cerebral onde são identificadas, armazenadas na memória e, eventualmente, enviadas a outros centros cerebrais (ROEDERER, 2002). É por isso que, ao escutarmos um dobrado, o badalo de um sino ou um estampido, podemos experimentar sensações de alegria, nostalgia e medo, antes mesmo de podermos visualizar mentalmente e racionalizar sobre as imagens mentais decorrentes dessas percepções auditivas: uma cena de circo, a igreja convocando os fiéis para a missa e um tiro.
A noção de imagem sonora permite-nos vislumbrar a complexa rede de relações que se estabelecem entre espetáculo e espectador-ouvinte a partir de uma escuta cênica, pois diferentes maneiras de se utilizar de elementos musicais num espetáculo evocam também diferentes imagens sonoras. Por isso, a musicalidade do teatro de rua pode ir muito além da simples utilização de "música" como um recurso acessório da cena. O impacto das imagens sonoras produzidas pelos atores contribui para multiplicar, polifonicamente, os sentidos do espetáculo, possibilitando ainda a economia de elementos cênicos que o ambiente frequentemente ruidoso do espaço aberto não favorece, como a palavra e o diálogo. Uma simples canção pode tornar desnecessária uma longa explicação ao público e potencializar, com os seus elementos musicais (o ritmo, a melodia, o timbre dos instrumentos musicais utilizados, o trabalho vocal), os sentidos menos explícitos, as associações com outros fatos que se deseja mencionar, a memória afetiva; enfim, alcançar dimensões inacessíveis apenas pelo verbal/conceitual.
Estudos de semiologia musical, como os do etnomusicólogo Jean-Jacques Nattiez, levam à identificação de uma "sintaxe musical" – um sistema de relações formais entre os elementos constituintes do fenômeno musical (melodia, harmonia, estilos) - e uma "semântica musical" que relaciona as sensações auditivas a outras esferas, além da sensorial: emoção, cultura, ideologia. Para o pesquisador, há dois níveis de recepção musical: no primeiro, mais consciente, o ouvinte percebe sensações físicas; no segundo, mais profundo, as sensações se ligam a sentimentos. Além disso, se por um lado procedimentos sonoro-musicais podem ser empregados numa cena teatral com o propósito de suscitar no público associações como as descritas por Nattiez, por outro cumprem também a função de organizar sonoramente o jogo dos atores, pois a música de cena favorece ao ator manter-se plenamente consciente dos laços existentes entre cada trecho, frase musical, tonalidade de uma canção, e o ritmo, a duração e intensidade de uma cena ou mesmo do espetáculo como um todo.
Deste modo, a escuta cênica das imagens sonoras produzidas na cena teatral de rua parece ser um caminho através do qual é possível transcender os limites bidimensionais de uma recepção estritamente visual (FLÜSSER, 2002) e expandir os canais de recepção para uma apreensão multidimensional do espetáculo - principalmente através de sua musicalidade - uma vez que a percepção do som pelo ser humano se dá por todas as direções, diferentemente da percepção visual que é prioritariamente frontal (e em menor medida, lateral).
Todas estas possibilidades em torno da musicalidade do teatro de rua, aqui apenas esboçadas, apontam para a ideia de que esta modalidade possui aspectos estéticos e exigências técnicas diferentes daquelas que a sociedade ocidental moderna acostumou-nos a compreender como sendo as "do" teatro e que, a rigor, foram erigidas para atender ao teatro das salas fechadas. Por isso, apresenta-se para o teatro de rua o desafio de construir as próprias referências, com base em suas especificidades estruturais, como aporte imprescindível para o desenvolvimento de atividades de pesquisa estética, análise do espetáculo e crítica teatral, voltadas especificamente para a modalidade.
Referências bibliográficas
FLÜSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume, 2002.
HARNOUNCOURT, Nikolaus. O discurso dos sons: caminhos para uma nova compreensão musical. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significações musicais. Tradução de Silvana Zilli Bomskov. In: Per Musi. Revista Acadêmica de Música. Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal de Minas Gerais, nº 10, jul-dez/2004, p. 5-30.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003.
ROEDERER, Juan. Introdução à Física e Psicofísica da Música. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
[1] Doutora em teatro pela Unirio; integrante do Núcleo Brasileiro de Pesquisadores de Teatro de Rua.
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