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segunda-feira, 13 de maio de 2013

O teatro de rua e suas implicações sociais e políticas

O Teatro de Rua e suas implicações sociais e políticas[1]
Parte I. - O nome do evento
            Sempre no sentido de entender o que tenho feito ou nas ações de que tenho participado caracteriza-se fundamental destacar os termos que lastreiam minha reflexão e que, neste caso, abarcam o evento e minha fala. Então, vejamos:
- Seminário (lt.) adj. - Seminal (seminãle): destinado a ser semeado; prolífico. Seminário, propriamente dito, do latim moderno seminarium - instituições de natureza religiosa apropriadas para o retiro do corpo e da alma para pouso assimilador do espírito das leis divinas. Instituições foram instituídas pelo Concílio de Trento, em 1545, cuja acepção passa a significar: viveiro, alfobre (canteiro entre dois regos por onde corre água); em sentido figurado: lugar que produz grande quantidade de qualquer coisa.
            Juntando os termos: um seminário é um grande território de semeadura, de produção, de estimulação, de ampliação, logo: de troca de saberes.
- Nacional (fr.) nacional, derivado de nação (nation) - concerne a extensão local em cujos espaços convivem aqueles premidos pela mesma identidade, que falam uma mesma língua, que praticam uma mesma cultura, que têm uma mesma mentalidade, que possuem uma mesma nacionalidade, que são filhos de um mesmo território identitário.
- dramaturgia (gr.) drama (sentido conotativo de) ação + tourgía (sentido de trabalho, de tecimento), portanto: trabalho de tecimento de ações. Em francês, dramaturgia, dramaturgie, de modo mais amplo, o conceito significa: arte de compor peças de teatro.
- teatro (gr.) theatron lugar de onde se vê, referindo-se, portanto, a plateia (do grego plastos - que é manipulável por gesso ou cera);
- rua substantivo latino derivado de ruga - que, figurativamente, alude a traços e marcas no rosto. Desse modo, a cidade também é um corpo, repleto de rugas-artérias (ruas) marcadas pelo tempo e cuja construção ocorre, fundamentalmente, pelas forças da natureza, ou, no caso que aqui concerne, pelas mãos dos homens. Ruas como rugas sulcadas pelo intermitente trânsito de homens - sozinhos ou acompanhados; independentes ou motorizados; distraídos ou em posição de caçadores; abatedores ou em processo de abate... Homens no tempo em tecimento a partir de múltiplas relações...
            A cidade, na condição de um imenso e sempre ampliado corpo, é constituída pelo trabalho de sua gente. Trabalho que marca e vinca significativamente o mundo natural pela transformação ocorrida por meio do trabalho. A quase totalidade absoluta do que é possível lembrar no corpo da cidade - da nossa cidade - refere-se fundamentalmente ao processo de transformação, fruto do trabalho...
            Uma cidade representa a materialidade de corpo repleto de artérias cujo sangue e combustível alimentam um entrecruzamento intermitente de gente. Gente cujos corpos sulcam, marcam e enrrugam a cidade. Por seu lado, a cidade, também, marca - de múltiplos sentimentos - o corpo, a cara, e significativamente o coração dos homens. Ama-se, portanto, uma cidade (ou o interplanetário de tantos sulcos) de uma maneira que o Estado não consegue impor. Ama-se a cidade pela sua gente: algumas vezes suja, tantas vezes rota, quase sempre abandonada à sua própria ou imprópria sorte. Ama-se a cidade como algoz e como musa; como tantos nós e obtusa; permanentemente veloz e confusa; construída pelo trabalhador e dela recluso: Cuspido para fora, andarilho, lanhado, serrilhado. Trabalhador apartado, alienado e reificado de seu feito. Um sujeito cuspido.
            Esse trabalhador, também, não tem direito a fazer ou ter acesso aos bens culturais na cidade por ele construída. O trabalhador é uma espécie de mãe-apenas-incubadeira, cujos filhos lhes (des)per-ten-cem...
            Desse modo, penso ser oportuno relembrar a tese número VII, contida nas Teses sobre a filosofia da história  (1985), Walter Benjamin afirma:
Quem até esta data sempre obteve a vitória participa da grande marcha triunfal que o dominador de hoje celebra por cima daqueles que hoje estão atirados no chão. Como era de costume, a pilhagem é arrastada junto ao cortejo triunfal. Costuma-se chamá-la de: bens culturais. No materialismo histórico, eles terão de contar com um observador distanciado. Pois tudo o que consegue perceber em termos de bens culturais, tudo, sem exceção, tem uma origem que ele não pode rememorar sem horror. Eles devem a sua existência não só aos esforços dos grandes gênios que os produziram, mas também à anônima servidão dos seus contemporâneos. Não há documento da cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie. E assim como os próprios bens culturais não estão livres de barbárie, também não o está o processo de transmissão com que eles passam de uns a outros. (p.157)
            Pois é, documentos de cultura são, também, documentos de barbárie. O que tem ocorrido de modo idêntico à expulsão do trabalhador do centro das grandes cidades, em bandos sempre maiores - cada vez mais distantes: para as periferias, para os morros, para os mangue (e então, o conceito de nação não vale neste contexto) - ocorre, de modo semelhante aos artistas populares (e os cruzamentos das cidades têm se constituído nos poucos espaços de representação que lhes sobraram) e artistas do teatro de rua (cujas artérias públicas lhes têm sido proibidas ao uso). Cujas artérias têm servido sobretudo como escoadouro de mercadorias.
            O teatro de rua, praticado pelos sujeitos expulsos desde os primeiros registros, tanto da ágora grega (praça cujas decisões eram votadas pelos cidadãos) como da polis (cidade-Estado grega), metaforicamente poderia significar um informe uniforme para o rosto, algo que talvez se nomeasse hoje, quem sabe: maquiagem, máscara, processos de rejuvenescimento à la botox, à la laiseres, à la plásticas... O que está contido nesta metáfora é simplesmente: as rugas da rua são artérias condenadas a serem apenas de passagem, não de semeadura artístico-cultural.
Parte II. - O "nome" da fala ou apontando algumas questões

            O grande poeta e músico Chico Buarque de Hollanda, em 1977, escreve Primeiro de maio, em cuja letra aparece:

Hoje a cidade está parada/ E ele apressa a caminhada
Pra acordar a namorada logo ali/ E vai sorrindo, vai aflito
Pra mostrar, cheio de si/ Que hoje ele é senhor das suas mãos
E das ferramentas

Quando a sirene não apita/ Ela acorda mais bonita
Sua pele é sua chita, seu fustão/ E, bem ou mal, é seu veludo
É o tafetá que Deus lhe deu/ E é bendito o fruto do suor
Do trabalho que é só seu

Hoje eles hão de consagrar/ O dia inteiro pra se amar tanto
Ele, o artesão/ Faz dentro dela a sua oficina
E ela, a tecelã/ Vai fiar nas malhas do seu ventre
O homem de amanhã
                Da poesia podemos voltar, agora, à etimologia e ao tema desta tentativa de fala.
- Social adjetivo, do latim socîãle palavra realmente difícil de apreender. Concerne a sentido de feito para a sociedade, sociável... De qualquer modo, se não nos fizermos de gaiatos, não se pode deixar de considerar que a raiz da palavra diz respeito a sócio, relativo a aliado... Mais uma palavra cujo sentido se perdeu, apartou-se da realidade!
            De outro modo, e ao observar o mundo que nos envolve, é possível dizer que sociedade, solidariedade estão muito distante da realidade. Assim, sem rasgados idealismos, o teatro de rua, por maior que seja o empenho da totalidade absoluta de seus fazedores, não tem conseguido - por cerceamentos e imposições do Estado - se fazer, como gostaria, presente na vida da cidade. Para evitar ruídos outros, refiro-me aqui às tantas proibições do uso dos espaços, ou melhor, lugares/ logradouros para apresentação de seus trabalhos. Com Michel de Certeau, no livro A invenção do cotidiano (1996) um espaço é um lugar praticado.
            Potencialmente, os artistas populares e os fazedores de teatro de rua têm transformado lugares em espaços para trocas simbólicas significativos, mas - e como tem acontecido agora - os legisladores, feito tantos Creontes apontados nas tragédias clássicas gregas, tem arbitrado e imposto normatizações impeditivas. Eleitos para representar interesses diversos, políticos inescrupulosos têm despoticamente imposto impostos ao uso das rugas da cidade. Evidentemente, os argumentos usados para o cerceamento do direito de uso (algo próximo aos momento de ditadura) impedem o uso das rugas construídas pelos trabalhadores: apenas transeuntes ou passageiros apressados de espaços que lhes pertencem por direito, de trabalho e constitucionalmente.
            Vivemos em tempo de arbítrio sem tanta camuflagem.
- Política  do grego politiké, cuja raiz é polis, corresponde à ciência dos negócios do Estado. Se a palavra fosse polidiké ter-se-ia nessa junção o conceito de cidade justa, porque Diké é a deusa da justiça... Mas como tudo é passível de mudança, ainda que o nome fosse esse, a justiça, assim como o primeiro nome da bandeira brasileira (Ordem, justiça e trabalho) seria apenas formal: âmbito da retórica!
            Mas afirmar que não existe uma política cultural (e que aquelas anteriores, sendo a última delas parida e imposta em 1975, sob a ditadura militar) não se caracteriza em retórica. Não estou bem certo, na medida em que estou tentando me colocar a par desta questão, mas penso não ser equivocado afirmar que jamais existiu no Brasil programa, projeto, política para ocupação dos espaços públicos com fins de entretenimento ou diversão. Nas franjas da Lei, cada legislador da hora, preenche as brechas do modo que melhor lhe aprouver.
            Desse modo, e por enquanto, pode-se concluir que os artistas populares, expulsos da polis grega, durante a Antiguidade clássica, encontra-se, até agora, em processo de diáspora. Verdade em que alguns momentos ele foi acolhido: nos feudos, nos castelos, nos inferninhos de toda ordem... Mas, e no caso brasileiro, os artistas de rua continuam condenados à deambulação.
            Por último, e na medida em que já se comentou, o que sobra ao chamado Teatro de Rua?
            Para começar, e antes mesmo de os processos de troca poderem se dar com os espectadores, em geral – distraídos transeuntes ou atentos participantes – é preciso desenvolver um intenso processo de militância. O Núcleo Paulistano de Pesquisadores de Teatro de Rua, formado em 2010 (e com significativa produção militante), desenvolveu discussão em 31 de Maio de 2011, a partir do ensaio O autor como produtor (1985), de Walter Benjamin. Apesar de alguns dos exemplos apresentados na obra terem sido "superados" (por exemplo, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas ter entrado em processo dito de "dissolvência", em 1989), a que se ater, permanentemente, às teses do filósofo segundo as quais os fazedores do teatro épico (mesmo que não em perspectiva épíco-dialética), por encontrarem-se à margem das tendências hegemônicas, precisam conciliar qualidade estética a pertinência política de suas propostas. De outro modo, e se pensando o teatro levado e praticado na rua, a forma estética, precisa conciliar – tida, pensada e clarificada a questão da acessibilidade – conciliar pertinências estéticas e políticas.
            Dessa proposição, portanto, a velha e perene questão: para quem fazer? por que fazer? a partir de que expedientes e de que pontos de vista?... precisam ser considerados para o deflagrar do processo.
            É indiscutível o salto de qualidade por que passa o teatro de rua feito em São Paulo. Aliás, não são poucos os grupos de teatro, mais ligados àquilo, mesmo que genericamente se chama de alternativo, que têm buscado uma im/explosão dos espaços fechados, muitos deles se dirigindo para a rua, na medida em que muitas das experiências destes grupos o espetáculo não cabe mais na caixa; que a caixa não consegue mais dar conta das necessidades de criação e de interlocução.
            Carlos Drummond de Andrade, em Nosso tempo, afirma que estes são "[...] tempos de partido/ tempos de homens partidos." Talvez, por conta disso, tantas sejam as ações propostas em semeadura. Talvez por conta disso, se pode reler uma das maravilhas de Chico Buarque de Hollanda:
A novidade que tem no Brejo da Cruz/ É a criançada se alimentar de luz
Alucinados meninos ficando azuis/ E desencarnando lá no Brejo da Cruz
Eletrizados cruzam os céus do Brasil/ Na rodoviária assumem formas mil
Uns vendem fumo. Tem uns que viram Jesus/ Muito sanfoneiro cego tocando blues/ Uns têm saudade e dançam maracatus/ Uns atiram pedra outros passeiam nus/ Mas há milhões desses seres/ Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta/ De onde essa gente vem
São jardineiros, guardas-noturnos, casais/ São passageiros, bombeiros e babás
Já nem se lembram que existe um Brejo da Cruz/ Que eram crianças: E que comiam luz/ São faxineiros balançam nas construções/ São bilheteiras, baleiros e garcons/ Já nem se lembram/ Que existe um Brejo da Cruz
Que eram crianças e que comiam luz.       
            Evoé a Chico Buarque de Hollanda e a tantas crianças cuja única diversão – e não apenas no Brasil - é o engolimento de luz. Em tempos de impedimento de semeadura, a semeadura partilhada. Em tempos de proibição quase consumada, a luta partilhada. Em tempos de rugas camufladas, escondidas, todas elas (re)tomadas.
Bibliografia consultada
BENJAMIN, Walter. Teses sobre a filosofia da história, In: Walter Benjamin, 50. São Paulo: Ática, 1985.
CERTEAU, Michel de.  A invenção do cotidiano: 1. artes do fazer. 2a ed. Petrópolis: Vozes, 1996.



[1] O texto foi preparado por Alexandre Mate e apresentado durante o Seminário Nacional de Dramaturgia Para o Teatro de Rua, organizado pelo Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo.

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