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segunda-feira, 13 de maio de 2013

De um passante – sobre o último dia da VII Mostra de Teatro de São Miguel Paulista


Gyorgy Laszlo[1]

Alguém que caminhasse desatento por aquele domingo dia 16 de Dezembro à tarde na Rua Ida Vanussi Puntel, em São Miguel Paulista, extremo leste de São Paulo, poderia evocar o primeiro verso de Charles Baudelaire, que dedica a uma passante: "A rua em derredor era um ruído incomum". O cheiro de churrasco, as latinhas de cerveja, as gargalhadas e os ritmos pulsando dos aparelhos sonoros invadiam as calçadas: vindas das casas, uma ao lado da outra, com sua própria churrasqueira, algumas dividindo o som, outras rivalizando com ele, criando assim uma terceira música, espécie de sinfonia torta, as comemorações se misturavam. Este mesmo passante poderia pensar, em um exercício de imaginação, que não havia paredes a separar as casas de modo que se tratava de uma única grande casa, imensa, ocupando os dois lados da rua, a organizar uma única festa. Naquela manhã o Corinthians ganhava o título de campeão mundial.

Mais à frente, um pouco distante das camisas preto e branco, podia-se ver um bloqueio na rua, algo como uma barricada colorida: a rua fechada por pessoas, cadeiras e lonas: era o espaço de apresentação da VII Mostra de Teatro de São Miguel Paulista, idealizada pelo grupo Buraco d`Oráculo. Ocupada por muitas crianças e moradores, que, mesmo não envolvidos com a música que ficara lá atrás nem com os espetinhos que se insinuavam às narinas, traziam sorrisos e a expressão de divertimento: o resquício do espetáculo que acabara há pouco: Bufonarias II, da Trupe Olho da Rua, de Santos. Os atores, ainda trajados de palhaços, limpavam suas maquiagens e faziam brincadeiras com quem por perto deles passasse. E o cenário, que aos poucos se desmontava, misturava-se ao do Saltimbembe Mambembancos, do grupo Circo e Teatro Rosa dos Ventos, de Presidente Prudente.

Esta efusão de cores vivas materializada em pernas de pau, instrumentos sonoros, malabares, vestes espalhafatosas, propiciada ao observador que se atentasse à arrumação, faz suscitar uma ideia de irmandade, para além da amizade presente entre os dois grupos: espetáculos de palhaços, de grupos com uma militância muito presente, que apesar de suas especificidades, fazem do riso arma de ação política. Sabem, também, como é importante ao teatro de rua, trazer o público para o centro da cena, onde se envolve e tem a possibilidade de se transformar.

Neste meio tempo, enquanto os integrantes do Rosa dos Ventos se preparavam para dar início à apresentação, o público assistia à peculiar intervenção de J.E Tico e seus Fantoches, que misturava humor, música e violência: uma das cenas trazia ao palco um boneco preso em pau-de-arara. Seu agressor, fantasiado de "autoridade", lhe violentava, relembrando as seções de tortura que marcaram os anos de repressão militar em nosso país. Por ser um boneco o torturado, com música de fundo e um palhaço como torturador, a cena despertava um estranhamento: o riso e o choque mesclavam-se, tornando-se quase indiscerníveis.

Saindo um pouco do centro da cena, em uma calçada, via-se uma banca com livros expostos. Tratava-se de um projeto de distribuição gratuita. Em sua maioria literatura brasileira, a banca era constantemente visitada por curiosos e interessados. Em certo momento, a leitura dos títulos e das orelhas teve de ser interrompida: anunciava-se no microfone o início do Saltimbembes que seria precedido pela leitura de algumas poesias, numa espécie de mini sarau improvisado, feito pelo projeto Hospício Cultural em que atuam jovens escritores do bairro.

As palhaçadas e os números de malabarismos despertavam o riso do público, muito concentrado no que via e participava. A um observador, não poderia passar despercebida, distante da cena, a arrumação do cenário do Corinthians meu amor, espetáculo a ser realizado em seguida pela Brava Companhia. Esforçados e dedicados, os atores organizavam objetos expostos em prateleiras, como um boné do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, algumas bebidas, troféus, uma placa com o dizer Boteco do Olho Vivo. Arrumavam cadeiras, ajustavam as lâmpadas... Ao que parece, o público seria convidado a festejar o fim da tarde em um bar no meio da rua.

Mas logo o palhaço Dez Pra Sete, pescava a atenção para si. Enquanto Custipíl de Pinóti, outro dos palhaços do Rosa dos Ventos, tentava anunciar a entrada para a lona de uma aberração circense, gêmeos siameses separados por um serrote enferrujado, Dez Pra Sete o atrapalhava ao vender, com gestos espalhafatosos, seu sorvete Xupaki, de sabores variados, inclusive cocô queimado; "é coco, Dez Pra Sete" – corrige Custipíl de Pinóti; ao que ele responde: "Mas o cocô é meu ou é teu?". A venda do sorvete Xupaki, em duas bolas ou picolé, é pra sustentar os cinco filhos do palhaço. Custipíl de Pinóti, raivoso, lhe diz: "Mas o que eu tenho a ver com teus filhos?" "Nada. Porque se tivesse, teria que pagar pensão".

Dividido em esquetes, o espetáculo Saltimbembes Mambembancos tem como principal força a relação com o público, feita de modo fluído, como se não houvesse algo que dividisse quem assiste de quem realiza as brincadeiras. Sem ignorar o que acontecia para além da lona, muito comum era um diálogo entre os palhaços ser interrompido para responder à intervenção de alguém do público. Sempre explicitamente presente na cena, as pessoas ali presentes se envolviam e, pela atenção exposta nos risos e nos olhares curiosos, não seria de se estranhar que ficariam acompanhando a palhaçada por seguidas horas, se possível fosse ao Rosa dos Ventos estar em cena por tanto tempo.

Com o fim do espetáculo, o olhar podia cair com mais atenção no cenário, ainda por montar, de Corinthians meu amor – segundo Brava Companhia, uma homenagem ao União e Olho Vivo. Percebia-se que alguns moradores abriram suas casas para os atores, que puderam se utilizar de luz elétrica para iluminar o cenário - a peça teria início depois do entardecer - e tiveram um espaço fechado, longe da chuva que hora ou outra caía, para guardar os equipamentos de som e outros apetrechos sensíveis à água.

Com o texto adaptado do dramaturgo e diretor de teatro César Viera, o espetáculo homenageia o grupo Teatro Popular União e Olho Vivo, que há 45 anos faz um trabalho de militância tanto no Bom Retiro, bairro no centro velho de São Paulo, onde fica sua sede, quanto em comunidades pobres, na periferia da cidade de São Paulo.

A peça se inicia com uma reza, realizada pelos atores em roda, que evocava muitos dos temas que ali foram tratados: a crítica à sociedade do espetáculo, ao modo de vida capitalista e, principalmente, à religião. Traziam nomes como Antônio Conselheiro e Lampião, que, ao seu modo, lutaram e trouxeram esperanças aos miseráveis do sertão, e também os de Marx e alguns dos herdeiros de sua teoria materialista, contestadora da religião e de suas práticas. A prece, ali, parece querer representar o encontro de ideias revolucionárias com parceiros e amigos que, no Boteco do Olho Vivo, comungam de um mesmo sentimento contestatório.

Servidos de cerveja e churrasco, o público assistiu ao desenrolar de embates cujo cerne era a luta de classes e as armadilhas de um sistema que busca transformar em inimigos aqueles que sofrem com problemas semelhantes. Em determinado momento, nos perguntam: torcemos ou somos torcidos? Trabalhadores que se voltam contra sua própria classe em decorrência da rivalidade de seus times, cujos emblemas ostentam como a um símbolo sagrado.

A peça parece querer dessacralizar os ídolos em nome da união da classe trabalhadora, que vem acumulando derrotas atrás de derrotas em busca da construção de uma sociedade mais humana e igualitária. Neste jogo, que eles representam em cena, o juiz não esconde seu lado: joga no time dos abastados. A bola, presa a um cabo de vassoura, parece seguir as ordens de quem detém o poder. Nada joga a favor da classe trabalhadora, que deve achar em si mesma as forças para transformar esta situação de violência e exploração: cabe ao sentimento de revolta trazer a esperteza para driblar a opressão e a entrega à luta para mudar o jogo.

Como uma espécie de homenagem ao recém título corintiano, o espetáculo encerra a VII Mostra de Teatro de São Miguel Paulista com o sentimento de que há ainda, para as classes populares, muitas vitórias a serem conquistadas.


Publicado originalmente em A Gargalhada nº 26 fev de 2013.

[1] Gyorgy Laszlo contribui, como leitor crítico, com a Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP), Arte e Resistência na Rua e participa do projeto virtual Cena de Rua (cenaderua.wordpress.com), sobre teatro e teatralidade em espaços públicos.

 


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