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sábado, 4 de maio de 2013

Espectador Ativo


Lembro-me de um filme de 2003, hollywoodiano, com um enredo que me deixou surpreso. A história se passa na Idade Média e mostra um grupo (uma trupe de comediantes) que apresenta autos bíblicos pelo interior da Inglaterra. Quando o mentor da trupe morre, seu filho, o sucessor, conversa com os outros e decidem tentar algo novo, mas o quê? Estão em um vilarejo controlado por um barão, existe uma feira, algum comércio, mas a estrutura social é feudal. Conversam com os moradores, ficam sabendo de um crime e ouvem a versão oficial do ocorrido: um adolescente foi morto por uma mulher que era acusada de bruxaria. A trupe resolve encenar a esta história. Ao apresentá-la para o público, ficam surpresos, pois os moradores, ao verem a encenação, recusam a história oficial e começam a apontar os seus problemas. Os atores abandonam seu roteiro e passam a encenar o que está sendo narrado pelos moradores. Ao reunir as visões dos moradores, conclui-se que o adolescente foi  morto pelo barão, que ele havia abusado do menino, inventado a história e culpado a pária do vilarejo. A população que assiste ao espetáculo se revolta e toma o castelo.


O filme retrata um momento em que a produção artística ajudou a questionar o meio social onde as pessoas estavam inseridas. A peça fez com que o público deixasse de ser consumidor; ao participar da produção, as pessoas deixaram de ser espectadoras e passaram a ser colaboradoras.  O contraditório em minha experiência é que o público do cinema é espectador por definição passivo.

 

No século passado, o cinema, o rádio e a televisão fizeram o teatro se rever, buscar na sua raiz a sua reinvenção. Com a internet, a indústria cultural, que sempre se desenvolveu em sincronia com um mercado comprador, vive uma crise semelhante à que o teatro viveu durante o século XX. Vivemos um momento em que a indústria cultural passa pela transformação mais profunda, uma coisa que não parecia ser possível aconteceu, os meios de reprodução em grande escala das obras deixaram o Olimpo do grande capital e se aproximaram da população. Além disto, mesmo a produção de filmes pode ser realizada por qualquer pessoa que tenha uma boa ideia, acesso a um celular, e à internet.

 

O que foi o motivo do teatro se rever há cem anos, continua a ser e se reafirma: o teatro é uma arte em que o espectador deve ser questionado e deixar a passividade por excelência, pela sua característica básica. Na presença do público durante a realização da obra, o questionamento se torna possível e desejável. Hoje temos acesso a custo baixo a quase qualquer obra cinematográfica, temos acesso a informações de todos os tipos, temos como produzir e divulgar vídeos rapidamente, as linguagens tendem a se transformar. O teatro que conhece sua própria história pode vir a ser uma legítima referência para se questionar o que está sendo proposto na obra durante sua realização e o público ter uma atitude ativa. Este tipo de teatro passa a ser necessário urgente.

Não vou falar das produções que insistem em querer disputar com a indústria cultural um jogo perdido, como dizia Brecht quando falava deste tipo de produções há 80 anos: "tem consequências tremendas, que não são suficientemente tidas em conta. Pensando possuir um aparelho que na realidade os possui, [os artistas de teatro] defendem um aparelho que já deixaram de controlar, que já deixou de ser, como ainda julgam, um meio para os produtores, para se tornar um meio contra os produtores".

 

Se é possível que os coletivos teatrais renovem a sua linguagem com experiências multimídia, também é possível que os trabalhadores da indústria cultural aprendam com estes coletivos as formas de se organizar para produzir obras que contemplem a participação crítica dos espectadores, pois os meios técnicos estão totalmente disponíveis. Se o cinema apresenta obras acabadas, a internet já demonstrou que a televisão, como o rádio, podem ser veículos de duas mãos.  Ao teatro cabe mergulhar em sua história e exercitar com o público a sua capacidade de questionar, de interferir na obra e deixar de considerar natural aquilo que lhe é apresentado. Os trabalhadores dos demais meios de produção cultural tem muito o que aprender com os coletivos teatrais.


   Márcio Boaro - Diretor teatral
 

Texto publicado no Jornal Brasil de Fato - Edição 531 - de 2 a 8 de maio de 2013 



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